O VENENO DE SÓCRATES: UM PONTO DE INTERROGAÇÃO NUMA REALIDADE AFIRMATIVA.

cicuta a socrates

Poderia me contentar em fazer uma simples resenha do livro: Os Pensadores: Sócrates organizado por José Americo Motta Pessanha.

Mas, se assim o fizesse, não estaria eu ignorando o impacto de seu método interrogativo numa contemporaneidade onde a instantaneidade do pensar mina sua reflexão? Ou pior, não estaria fugindo da proposta socrática de dialogar com as pessoas interrogando-as a respeito do que consideram verdades adquiridas de outrem e que consideram absolutas – ironia – e levando-as pela dúvida e reflexão a descobrirem uma outra verdade interior, muito mais rica e efetiva que a primeira - maiêutica?

Sócrates viveu no apogeu do século Périclo, e também na decadência dos filósofos pré socráticos que perderam terreno para os sofistas. Em resumo, os sofistas negavam que a virtude da filosofia tratasse de desvendar o movimento dos astros ou a origem do universo (physis).

Pregavam que o homem é a essência das coisas e a verdadeira arete – virtude – seria tratar das sensações humanas através da linguagem e da retórica. Porém, desvinculada da physys (a alma das coisas), as palavras se dessacralizam e os valores humanos com elas expressadas perdem o peso do absoluto e da universalidade: tornam-se convencionais, circunstanciais, relativos.

Aqui cabe uma ironia socrática. Não consegue, leitor, perceber que vivemos uma época análoga a essa? Em tempos de polarização mundial, não travamos nossos embates com o máximo de retórica que podemos utilizar em nossa subjetividade? Não utilizamos, nas redes sociais e afins uma linguagem afirmativa, praticamente sem admitir oposições – nem diálogo, portanto - que é reflexo mais das convenções que moldam nossos ideais, das circunstâncias em que os vivemos e da relatividade de nossa própria subjetividade em detrimento de uma reflexão mais profunda para constatar sua real validade enquanto virtude e verdade universal?

Portanto, julgamos estarmos em posse da Verdade ao manifestarmos nossas afirmações com um peso de um ponto de exclamação. Porém, qual a real fonte dessa verdade que utilizamos como absoluta? Em tempo como os que vivemos, tomar partido é algo obrigatório, mas ao fazê-lo, consequentemente não estaremos abrindo mal de um aspecto fundamental da verdade: a verdade do outro? E por extensão, não estaríamos considerando este outro como um vil mentiroso e, portanto, nosso inimigo?

Não cabe aqui mencionar vários veículos de comunicação, culturas e ideologias que fazem este serviço por nós. É só escolher o que mais combina com a nossa personalidade e adotá-lo como fonte de verdade. Mas ao fazer isto é necessário saber que, ao relativizar um aspecto da realidade, essa escolha nos priva da totalidade da verdade. E, para Sócrates, com isto nos torna ignorantes da própria Verdade.

O que nos leva ao segundo aspecto do método socrático: a maiêutica. O reconhecimento de nossa ignorância. Ao reconhecermos que não sabemos o que julgávamos saber e ainda por cima tomávamos como verdade universal, ficamos abertos a uma catarse: a purificação da alma através da expulsão das ilusões, inverdades e equívocos que distanciavam a alma de si mesma.

Tal processo levava ao interlocutor socrático a descoberta de sua própria verdade e nisso constituía a arete – virtude – do filosofo. Ou nas palavras de Kant, passamos da minoridade, onde acatávamos conceitos pré estabelecidos para definir nossas ações, para ousar saber de fato e encarar a maioridade, emancipados de imposições de saberes e dispostos a construir nossa própria sabedoria.

E esse foi o veneno de Sócrates, ser uma questão viva que não proporcionava respostas fáceis, mas reflexões difíceis e libertárias. O mesmo veneno que o convido a tomar comigo, leitor, para que, juntos, possamos ao menos vislumbrar um antídoto para essa época neo-sofística, cheias de meias verdades e consequentemente de prisões para todas as almas que anseiam por uma liberdade real, de fato e de direito.

 

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