CRÔNICAS DO INSANATÓRIO II - EU VOU TE MATAR.

 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 


                                                 

                Acordou num camisolão dentro de um quarto, a janela mostrando, um atraente conjunto de árvores verdejante e, por trás daquele confortável verde, um grande muro de segurança com arame e cerca elétrica. Fora internado. Clínica L..... Não, não revelará o nome. Não é burro. Louco, as vezes e muito. Burro nunca. Vamos chama-la de clínica luta livre. Valia tudo lá. Viciados em crack, pó, meth, esquizofrênicos uivantes, ninfomaníacas, mitômanos, cleptomaníacos. Todos manjavam alguma arte marcial. 

Valia tudo na Clínica Luta Livre. Mas não havia nada de maquiavélico nesse vale tudo. Apenas algo brutal, um meio para a clínica afastar-se da intenção original de qualquer clínica: o processo de reabilitação e cura. Por que? Meu querido, a cada dia lá, pagávamos 9 paus por dia. Para que reabilitar? Vamos lucrar! A Luta Livre defendia seus próprios princípios: a brutalidade roubava-nos a iniciativa, ameaçava-nos a integridade física, deixava o psicológico em frangalhos, para, diziam, garantir nossa integridade íntima.  

Aquela pérola que deveria ser procurada, usufruída e alimentada com o talento dos profissionais organizados holisticamente – como a clínica pregava. Ao menos em seus folhetos e material publicitário. Bah. Pura ilusão para os olhos dos parentes dos nóias e doidões. 

Lá dentro, o bicho pegava. 

Nada do que falavam era confirmado por atos. E todos os atos eram deturpados por palavras. 

Funcionários usavam muito bem esse sofisticado método. 

Não demorava muito os internos pegavam a manha. As mulheres, usavam-na pouco, mas de maneira certeira. Os homens perdiam-se confundindo atos e falas com bravatas e atos falhos. Eram em sua maioria, ricos e mal acostumados. 

Geração nemnem perdida em pedra e cocada. Ouviram o galo cantar e não sabiam onde. De longe, pois as alas femininas e masculinas eram – inutilmente como se verá mais para frente – separadas, podia-se perceber que as garotas eram mais preparadas para a vida, apesar dos transtornos e vícios que os companheiros de Cícero, nosso doidão.  

Apenas ele, e outro cara haviam feito faculdade, aplicavam na bolsa. Mas ele, era um calouro, seu companheiro, um veterano. Ganhava uma bolada, perdia outra, alugava ações, com o crédito dessas últimas, aplicava em derivados e “porrava” de novo uma grana preta.  

Também éramos os mais velhos de lá, e juntos observávamos os doidões e junkies caindo de boca na sacanagem. Não conseguíamos entender como as pessoas podiam transar na Luta Livre. Ah, a putaria, a noite na clínica era xaveco, sedução e muito sexo. Os casais fugiam de suas alas e iam a uma zona morta do sistema de câmeras e mandavam bala.  

Elas, sempre no comando.  

Então julgávamos-nos, nós os investidores doidões, espertos o suficiente para não cair na bobagem hormonal de sempre mostrar-se mais macho, mais durão, predispostos à violência para alcançar a fêmea e o gozo. 

A “porrada” para eles era um recurso que saturava a atmosfera. Os machos alfa babavam, urravam e batiam no peito como gorilas. 

Os seguranças riam. E provocavam, em tom de brincadeira, mas daquele tipo agressivo, também de macho alfa. 

--- Tá macho hoje é? Ou acordou com o cú piscando? 

E riam. 

Cícero não ria. Alguns daqueles caras eram loucos o suficiente para cumprir suas bravatas. Era só notar os olhares de tesão contido por ódio e os sorrisos pontiagudos que só os jacarés e psicopatas tem naqueles rostos contraídos de ira. 

A violência pairava no ar, densa como metano numa mina subterrânea de carvão. 

A qualquer momento podia explodir. 

As vezes tornava-se concreta e a pancadaria era feia e perigosa. 

Pernas e narizes quebrados eram frequentes. 

O Coordenador responsável amava finalizar essas brigas com algum golpe imobilizador de Kravi-Mangá ou Jiu-Jitsu. Seu corpo expressava harmonia e precisão e sua violência era fria, mas podia-se ouvir o prazer com que falava baixinho ao interno prostrado diante dele, o falso sotaque nordestino suave estalando em sua língua: 

--- Ô homem de Deus, você quer ficar mais aqui, quer? Nós queremos o teu bem, ver você numa boa, tranquilo, sem neura... Sabe o que vai acontecer com você agora? Detenção. Não tem outro jeito... 

E um enxame de seguranças o imobilizava e rapidinho aparecia uma injeção nas mãos ágeis de alguma enfermeira. Apagado, lá iam os loucos e nóias ficar amarrados, de castigo, na detenção. 

Havia até um garoto de estimação, o Marcinho, um interno perpétuo com atraso mental. Oficialmente era adotado de um dos sócios da clínica.  

Como muito ocupado que era, deixara Marcinho aos cuidados dos “amigos” profissionais. Fizera do filho seu mascote.  

E Marcinho não era um mascote fácil. Quando encasquetava que alguém havia lhe ofendido partia com tudo para cima de quem quer que fosse dizendo: 

--- Eu vou te matar! Eu vou te matar! 

                                                                         

                                                                                                                                                       

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                  





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