Crônicas do Insanatório - I O SURTO

Celular chinês hackeado. Um bichinho chinês fofinho na tela do telefone dando tchau para a lógica. Dele e do aparelho. 

Lembrou-se do ano na faculdade de computação. Mexeu em chaves virtuais de configurações. Enfiou no troço códigos fontes vindos de recônditos da cuca. Algoritmos insanos ferviam em sua mente. 

Reiniciou o celular e botou o aparelho para carregar. 

Mas que porra é essa? Apareceu o cobiçado logo de outra marca, uma maçã mordida em preto e branco. 

Oba tenho um Apple e não sabia. 

Mas havia o hacker. Havia aqueles algoritmos luminosos na frente de seus olhos.  

O celular tornou-se um laboratório ilógico. 

Sua mente – era bipolar – euforizou-se. Há muito tempo mandara o psiquiatra, a psicóloga e os remédios às favas.  

As luzes tornaram-se vozes na cuca. Puta merda é a voz de Deus. Ele uivou para a noite, saca só: 

-- Procura outro para ser seu profeta, desgraçado. Ou tu me matas ou te mando pro hospício - vê se pode. 

A noite inteira assim. A luta com o hacker e berrando com Deus. Vizinhos gritaram com ele na alvorada. Tomates e ovos estouraram em sua janela. 

Ele nem aí. Ouviu que Deus havia o condenado a ser uma pedra verde em outro planeta esperando o sopro de Luz para dar vida no espaço inóspito do Cosmos. 

Ficou puto com isso. Queria viver para sempre. 

Acusou-O de criar o mundo com uma bimbada.  

Acusou-O de querer destruir o mundo com outra. Berrou para a noite: 

--- Ninguém morre, Deus infértil dos desertos. Que tenho eu que vivo num país tropical a ver com a esterilidade das areias que dominas? 

Vozes. Euforia. Batalhas imaginárias e postagens maaaaaluuuuucaaaaas no Facebook.  

Berros, uivos e mantras inumanos. Bem alto. Gritava noites inteiras nas longas insônias eufóricas. 

Tomates e ovos estalando na janela. 

Olha a maluquice: descobriu um microfone em tubo acústico no celular. Pode ver um chinês com um fone de ouvido o espionando do outro lado do mundo. 

Berrou com todas as forças: 

--- BOTE NO CU DE QUEM SÓ NO CU LEVASTE  

Pode ver os tímpanos do chinês estourarem em jatos de sangue. 

Sentiu-se bem. Satisfeito. Até passou a mão na barriga, tão feliz ficou. Cansou de brigar. Bateu a curiosidade. 

“O que tem dentro dessa máquina?”. 

Ele manjava um pouco de circuitos. A euforia deu corda. “Manjo à beça, vamos nessa”.  

Daí a destruição.  

Porrou uma das quatro câmeras do celular na mesa de madeira maciça da cozinha. Afundou a lente para dentro da carcaça. Meteu uma chave de fenda no buraco. Abriu o aparelho. 

Imediatamente retirou a fita de dados que ligava a bateria ao núcleo de processamento. Deu merda. 

A bateria, envolta em sacos de sílica- gel antitérmicos, começou a ferver. Fumaça saindo do treco e cheiro de plástico e metal queimado. 

Agiu rápido, retirou todas as matrizes positivas e negativas que faziam o circuito conhecido, o processador, umas peças high-tech que não conhecia e o núcleo central da inteligência artificial do celular.  

O revestimento da bateria inchava como um pão no forno. 

A bateria se auto fritava. 

Fumaça à beça saia daquela coisa. 

Ficou com medo do negócio explodir e jogou a carcaça do celular no meio do quintal, bem longe de onde estava. 

O treco soltou um PUUUUUUUFFFF! bem alto e implodiu. O revestimento da bateria desinflou-se como num passe de mágica. 

Respirou aliviado e voltou sua atenção para a mesa da cozinha e para as peças que havia separado. 

Intenção louca. Fazer seu próprio celular com as peças que sobraram. Engenharia reversa.  

Propósito mais maluco ainda: 

Falar com Deus e fazer aquela maldita voz Luminosa se apagar de vez de sua cabeça. 

Só não contava com a Area 51 em cima da mesa da cozinha. As peças do celular arrombado moviam-se sozinhas. Não paravam quietas, as bichinhas. Grudavam umas nas outras. Eram auto montantes. 

Encaixavam-se em ângulos cortantes. Correu buscar sua bússola. Nivelou-a com a mesa e as peças. Campos magnéticos mais malucos que sua cuca bipolar faziam a agulha girar e parar e daí girar de novo. Em sentido contrário.  

A fita de dados plástica grudara na cerâmica de uma xícara de café. Parecia tirar um barato da sua cara.  

Ele poderia jurar por Deus que era verdade caso não o tivesse xingado tanto. Mas, até aquele momento pensava que ainda mantinha um fio de lucidez.  

Sabia que  

1- A bateria implodira e fritara a placa mãe do celular. 

2- As peças irradiavam algum campo magnético e eram feitas de algum material desconhecido. 

“Porra o treco é radiativo e alienígena”, pensou, “câncer na cabeça!” – concluiu. 

Ficou desesperado, saiu para a rua. 

Havia uma oficina mecânica em frente a sua casa. Pediu chumbo. 

Um aprendiz de 17 anos olhou para seus olhos arregalados, a barba de semanas e o cabelo desgrenhado. O jovem borrou-se. Viu a face da loucura à sua frente.  

O jovem resolveu não contrariar o maluco da rua e lhe entregou chumbada de pesca. 

O doidão correu para casa e voltou para a cozinha, nem se preocupou em fechar a porta e o portão.  

Isolou as peças com a chumbada. As peças desgraçadas deram um salto mortal de uns 45 cms para o alto e tombaram inertes na mesa da cozinha. 

Ele ficou tão pasmo que não percebeu a equipe de paramédicos e policiais que entraram em sua casa para leva-lo ao sanatório. 

Deram-lhe uma chave de braço, abaixaram suas calças, aplicaram-lhe haldol com fernergan na bunda. 

Ele olhou-os com aquela cara “Que foi que eu fiz?” 

Um dos caras sacou, girou a cabeça em resposta: “olhe a sua volta” 

Foi então que viu. Sua “engenharia reversa”: fechaduras arrebentadas na ânsia de obter metal para seu “celular”, seu pc arrombado, a porta do freezer da geladeira despencando e fazendo um zumbido alto sem as peças que havia arrancado de lá. Uma porta corrediça parecia um queijo suíço com os buracos de murros desferidos sem que ele percebesse.  

Sua casa, seu refúgio era um rastro de destruição sem fim.  

Teve a impressão que a casa se tornara um túmulo violado por um psicótico. Então o sossega leão bateu e tudo se tornou escuro. 



Comentários

Postagens mais visitadas