O HOMEM TORTO III–FISIOLOGIA DE UM CASAMENTO EM DECLÍNIO 2

 

 

FERIDA NA ALMA

 

Com o tempo aquilo se tornou uma missão. E davam um duro danado para cumpri-la todo o dia. Com isto, esqueciam-se de cultivar o prazer, a paixão e o amor entre si.

Tudo ia para filha. As canções e histórias de ninar, com o tempo, substituíram o sexo. Alicinha tornara-se o único elo que sobrara intacto da longa corrente do amor que antes os unia e que, agora, na viagem, Ana tentava resgatar.

Queria recuperar o que havia antes, quando a corrente era forte entre ela e Arnaldo, quando queriam sentir o prazer dos dois em cada um. Olhou para Alice, depois para Arnaldo, um pedido mudo de paz.

Arnaldo, era um homem endurecido por uma rotina de ávido empresário. Prático e teimoso, não acreditava em arrependimentos e pesos na consciência. Achava que conserto não é solução, e o que estava feito não podia ser desfeito. Então não entendia direito porque pedir desculpas, não gostava disso.

Por isso demorou para dar importância ao climão que o acidente com a ema causara à viagem. Mas, ao observar Ana e seu meigo olhar para Alice, se tocou. E daria tudo para que aquele olhar fosse por outro motivo.

Era quase o mesmo olhar com que a convidava para a cama, nos bons tempos. Não. Era mais que cama. Era o carinho daquele olhar. O puro carinho que havia nos olhos da filha e que foram herdados de Ana.

Mas aqueles foram outros tempos, muito, muito distantes e, aquele, outro olhar.

O agora era o agora, Alicinha era tudo.

Respirou fundo. Tirou do console do carro uma garrafa de água. Bebeu um longo gole. Ofereceu a Ana. Ela recusou. Ele suspirou.

--- Olha Ana, me desculpa também tá. – voltou-se para a filha - É um passeio né, Alicinha, então vamos passear.

Alicinha sorriu. Era o exato sorriso da mulher quando feliz. “Se Ana voltasse a sorrir feliz para mim” – pensou Arnaldo, diminuindo a velocidade do carro e dirigindo-se ao acostamento da pista.

Arnaldo retribuiu o sorriso da filha e, pelo retrovisor, mandou-lhe um beijo com uma das mãos. Ana ainda o analisava. “Será que é assim?” Há esperança ainda p nós dois?

Alicinha, sem perceber a troca de olhares dos pais, mal conteve-se de alegria.

--- Siiiiiiiiim! Vamos passear.

Voltaram.

II

Chegaram.

Morta ou ferida, o corpo da ema desaparecera. Em seu lugar, penas no asfalto onde dera-se o impacto com a ema. Mas, não era uma simples amontoado de penas.

Uma trilha delas cruzava o asfalto e desaparecia em um dos poucos bosques que existiam nas extensas planícies verdes e douradas. O casal ficou surpreso.

--- Olha Ana, você está vendo isso. Algum bom samaritano tirou o bicho da estrada.

Ana arrepiou-se. Instinto em alerta. Bom samaritano? Tomara. Ana não gostava nada do que estava sentindo. O que a filha vira afinal? Por segurança, perguntou:

--- Você tem certeza que foi aqui, Arnaldo?

--- Claro que tenho, você não viu a marca dos pneus? Foi aqui. Tenho certeza.

--- Foi o homem torto, que ajudou o passarinho pai. Aquele da música, mãe. Vamos sair daqui e ir pro bosque. A gente acha a casa dele. É só seguir as peninhas. Somos bonzinhos, para nós ele não faz mal.

Naquele instante, Alicinha destravou o carro, abriu a porta, lançou-se para fora e disparou rumo a trilha de penas. Correu naquela velocidade inalcançável que só uma garotinha de 09 anos pode atingir.

Arnaldo e Ana ficaram atônitos.

As penas flutuavam à passagem da filha.

Quando Ana e Arnaldo deram por si, viram Alicinha pegar uma pena em plena corrida e desaparecer nas sombras do bosque.

Só quando ouviram a voz da menina cantando por entre as arvores verde escuro do bosque libertaram-se da paralisia. O som da voz da filha chegava-lhes tênue do bosque:

Homem torto,

que andava torto,

sempre torto,

colhe crianças

que não são Tortas

E brincam no seu quintal.

 

MAN TORT

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