O HOMEM TORTO–II–FISIOLOGIA DE UM CASAMENTO EM DECLÍNIO

 

 

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Ana estava ansiosa para sair daquele estado de guerra fria permanente que se instalara há tempos entre ela e Arnaldo.

Por isso planejara a viagem cuidadosamente. Era para ser uma reconciliação. Mas seria insuportável prosseguir desse jeito e Alicinha não tinha nada de boba, perceberia a tensão entre os dois e logo começaria a chorar. Isso era certo.

Brigas inúteis, por motivos quase sempre fúteis. Era a rotina da casa que agora instalara-se no carro.

Toleravam-se mutuamente, ela e Arnaldo cúmplices forçados em prol de Alicinha.

Nela depositavam todas as fichas restantes do casamento. Forçavam-se a manter uma rotina saudável para a filha, mas havia o clima de tensão, os olhares de desgosto e desapontamento, o silêncio tenso de quem media forças sem motivo. E a criança sempre chorava.

E sempre havia o gesto de silêncio e o revirar de olhos. Já tanto fazia quem pedia o silêncio e quem expressava seu desagrado no olhar. Nem lembravam mais como haviam iniciado essa linguagem de sinais peculiares. Tanto Ana como Arnaldo odiavam os gestos. Mas havia Alice....

E Ana estava farta de discutir com Arnaldo, tanto no passado como agora.

Já não lhe interessava mais o destino da ema. Além do mais acreditava que a filha vira algo que nem ela e o marido perceberam. Então, instalado o tenso armistício mudo entre o casal, voltou sua atenção para a filha:

--- Como assim, filhinha, que homem torto.

--- O da música que a mãe cantava para mim quando era pequena:

Homem torto,

que andava torto,

sempre torto,

cabeça torta,

corpo torto

colhe crianças

que não são Tortas

E brincam nas matas

do seu quintal

Com os olhos brilhando, a criança continuou:

--- Eu vi, volta pai, vai ver o bichinho prá mamãe. Assim eu vejo o homem torto. Vamos encontrar o homem torto, pai. Ele protege as matas...

Alicinha era uma menina criativa e inteligente, muito sensível. Percebia a tensão dos pais durante o dia e tornava-se inquieta e melancólica na escola. Mas toda a noite ouvia canções de ninar da mãe ou histórias do pai. Amava esses momentos. Nesses instantes, seu coração inocente estalava de amor. Confiava nos pais e cria piamente nos seres fantásticos das canções e histórias. Gostava das que davam medo.

No dia seguinte à canção ou à história, buscava as imagens dos seres fantásticos que lá moravam na internet. Muitas eram muito mais horríveis do que podia imaginar.

Então os pais lhe explicavam que eles eram feios daquele jeito para assustar os malvados que caçavam os bichinhos e matavam as árvores e plantas da natureza.

E tanto Arnaldo quanto Ana gostavam dos saraus noturnos de cantigas e histórias noturnas para a filha. Dava-lhes um conforto pacífico, em meio a tensão que definia o casamento.

 

BARCO LUA

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