AS CRÔNICAS DO INSANATÓRIO - IV - O DIA A DIA NA LUTA LIVRE


                                                                                                                                  

                                                                                                                                                                                                                                                                                       

Foi como se ele tivesse brigado com Marcinho também. De nulo, Cícero passara a malvado. E digno de sua violência. 

No mesmo dia, logo no corredor que levava à sala de refeições onde ira tomar café, Cícero disse bom dia para ele, ele afastou-se: 

--- Não chega perto de mim que eu te mato. 

Então Cícero ficou o mais longe que pôde, até que, com sua memória fraca, Marcinho esquecesse do assunto.  

Enquanto isso outras pessoas que tomassem porradas. 

E assim iam as coisas na Clínica Luta Livre. Todo dia: a mulher que acreditava em sua santidade começou a pregar aos berros de madrugada, acordando furiosíssimos nóias e doidões? Não precisa de terapia. Pau nela. O cara que se cortou de desespero na crise de abstinência. Tadinho... Pau nele 

E dai-nos química. Bagas, pílulas redondas, quadradas, gotas.  

--- Apenas a química poderá salvar seu cérebro, dizia-me sério psiquiatra Venâncio – Não é normal um estado de euforia de duas semanas, Cícero... 

Havia muito mais seguranças, do que profissionais de reabilitação. Onde estavam os psicoterapeutas, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, educadores físicos, palestrantes? E os seguranças, com poucas exceções, não pareciam nada preocupados conosco. Tudo era para agradar os doutores. Venâncio e outro que nunca encontrei por lá. 

Quanto ao atendimento psicológico e psquiatrico eramos como sandubas MacDonald’s: A Luta Livre tinham que nos despachar rapidinho e ao mesmo tempo, descolar um motivo para continuarem a faturar 9 paus por cabeça. 

Atendiam-nos, faziam-nos dizer nossos nomes, falavam do que fizéramos na clinica, do dia a dia, “fique por aí, a gente conversa. Toma mais Carbolitium e a gente vai se falando.” 

E essa era a preocupação deles com nossa integridade físico-psicológica. Conquanto obedecêssemos ao código não escrito da Clínica e mantermo-nos dopados, manteríamos a integridade de nossa segurança ou sei lá, a segurança de nossa integridade. 

Só nos porrariam se saíssemos mesmo dos trilhos. Ou se os porrassemos primeiro. Ou ainda se nos porrassemos uns aos outros.  

O que, não raro acontecia direto. 

E havia a onipresença das câmeras de segurança. O Big Brother dos loucos noiados. Ganha quem ficar imune a essa casa onde o ócio e o funk fazem um rapper esquizo bater a cabeça na parede de tanto ouvir funk ostentação. Um outro doidão conta que um helicóptero do PCC logo vai aterrizar lá, no pátio da clínica, para resgatá-lo, pois ele, o grande chefão do crime, não podia ficar mais nem uma noite nessa prisão de luxo. 

Havia luxo sim na Clínica. 

Havia uma piscina, academia, aulas de pilates e vôlei.  

Mas só o pilates e o vôlei eram atividades. Os demais eram recursos deixados ao abandono. Um ou outro gato pingado os aproveitava. 

Cícero era um deles. 

Mandou bala puxando ferro e fazendo pilates. Brincava na piscina e me divertia na academia fazendo um misto de basquete com polo, onde atirava a bola no centro de um pneu de caminhão e contava os gols. 

Estava lá suando, quando Denise apareceu. 

--- Você conhece magia. Pensa que é uma ilusão, mas tem toda a pinta e o balangandã de um mago. Assume como eu e pronto. 

--- Assumir o que, pô? 

--- Que é um mago, meu caro. 

Ela sabia ler as pessoas, viu seus pensamentos. Ele havia realmente sido iniciado na vibe mística dos anos 90, mas nunca levara a sério aquele conhecimento. Até agora. Pois no momento em que ela tocou nesse nervo quase esquecido, ele vibrou como as cordas de uma harpa: 

--- Sou um mago do verde. 

--- Eu sabia. E o que você faz? 

--- Conecto-me com as ninfas, dríades, espírito vegetal, mas prefiro acreditar que apenas sei alinhar-me na frequência em que vibra a inteligência das plantas. Elas são sábias... 

--- Eu faço tudo, nesse momento estou conjurando um buraco negro na piscina, você pode ver. 

Ele não podia. 

Mas quis ver. 

E viu. Até hoje ele não sabe se viu de fato ou se viu porque quis ver, mas viu, uma densa camada escura girando em órbita do ralo da piscina. 

Dormia e crescia. 

Crescia e dormia. 

Não foi ele que o viu. 

Foi um sentimento futuro. 

Um medo manso de quem não pode evitar o que está por vir. 

--- sim, eu o vejo... É temível e belo. 

--- Venha, vamos conversar com Hecate. 

E trocaram ideia noite adentro. As pessoas tinham medo dela, mas a respeitavam. Ela tinha piercings em todas as partes da boca. Parecia uma tigresa dente de sabre. 

Mas a conversa era boa, havia um feedback de egos que nos deixava ambos numa euforia só possível com os dois juntos. Ela era o motivo da euforia dele e ele o dela. Sacaram isso na hora. E resolveram dar um foda-se nos doutores da vida, principalmente os daqui, da Luta Livre. 

Suas mentes, unidas, viajavam em velocidades próximas a da luz, senão maiores.

E esse era o problema.... 


                                                                         


                                                                                                        





Comentários

Postagens mais visitadas