CRÔNICAS DO INSANATÓRIO - III - DE UMA RESSOCIABILIZAÇÃO SANGRENTA E VIOLENTAS FILOSOFIAS DE QUARTO



                                                                                                            



Para Cícero, Marcinho mais que um mascote, era o cartão postal da clínica. O símbolo vivo daquele lugar de paroxismos de tensão, surtos de extrema alegria, revelações chocantes e explosões de violência. Do dilaceramento químico ao murro que estraçalha os revoltosos clínicos, o “pai” de Marcinho estava se lixando para ele.  

Porque havia o adotado, para Cícero era um enigma. 

O “pai” demonstrava pouco interesse médico, negligência profissional no tratamento, total abandono de Marcinho aos humores da clínica e seus internos. 

Saia de lá apenas uma vez por semana em rápidos passeios por um pesqueiro ou shopping. Sua participação na violência física dos demais internos era ativa e seus medicamentos e posologia uma verdadeira violência química. 

Marcinho babava direto. 

Não só ele, havia muitos carinhas que, tanto remédio tomavam, mal conseguiam falar ou andar. Cícero temia virar um deles, gaguejando palavras, mal andando, sempre no quarto. Mal e mal, os víamos nas refeições. 

E aí de alguém que desrespeitasse as regras da Clínica Luta Livre.  

Houve um cara que estava num período de “ressociabilização” em casa, a famosa ressô. Um teste: mandavam o  viciado ou doidão para casa durante uns dias só para ver se o cara não recaia. Pois bem, e não é que um cara em ressô foi encontrado tomando um porre de rabo de galo e pó num boteco de terceira? 

Em outra cidade. Por acaso. Não tivera perdão. Foi impedido. Resistiu. Lutaram ele e o segurança da Clínica que o descobriu. O segurança o nocauteou. Amarrou-o no assento da moto. Trouxe-o de volta para a Clínica. 

Cícero o viu. Na época o transgressor foi detido justamente onde ele dormia. O rosto do cara estava em sangue. A atmosfera carregara-se de suor e bafo de álcool. Cícero saiu do quarto. Só voltaria quando o detido dormisse.  

Estaria escuro, não veria mais nada, tomaria meus remédios, o escuro mole quente e acolhedor de imediato tomaria seus sentidos. Amanhã veríamos o que aconteceria. Era assim que se pensava na clínica. Amanhã veremos... 

Mas tem o Marcinho, voltemos a ele: Cícero tratava-o bem, mas o evitava. Tinha medo que o garoto brigasse com ele. 

 Cícero havia brigado com um companheiro seu de quarto, o Juarez.  

Era um cara que simplesmente adotara o pirralho de miolo mole. Descolara tênis, cortou o cabelo do garoto, ensinou-o a lavar-se – nem isso o pobre coitado sabia - pagava Coca-Cola e doce para o garoto. Resumo da encrenca de Marcinho: Idade mental = 09 anos. Idade real = 16 anos.  

Cícero não abria a boca com Marcinho. Não saberia o que dizer e isso poderia ser encrenca.  

Meu Deus, tinha medo de Marcinho. 

Mas todos os demais brincavam com Marcinho, muitos de maneira abusada e cruel, mas ele não conseguia distinguir uma da outra. Apesar de todo o medo que sentia, era doloroso ver aquilo. Nauseante. 

De maneira que quase nunca cruzava com Marcinho. Evitava-o ao máximo. Quando o encontro era inevitável tratava-o bem. No mais, distância a todo custo. 

Ele lhe dava tanto medo, o Marcinho, que esboçou uma história onde ele era adotado por um casal louco por armas e por artes marciais e, inconformado com a morte dos pais faz um bom estrago com Glocks, Uzis, M16, facas e outras armas, matando aqueles que considerava – dentro de seu pouco e inútil discernimento – malvados e deixando viver os bonzinhos. 

Dentro desse sistema fictício da história, muito era realidade. Porém, Juarez, amigo de quarto de Cícero, era um querido, principalmente em seus atos. Marcinho o defendia de corpo e alma contra os “malvados” que o ofendiam. 

Descendente de espanhol, viciado em pó e bipolar, Juarez dizia exatamente o que pensava. Eu retrucava com outro pensamento, não necessariamente o meu. 

Filosofávamos... Ele nihilista... Ou romântico alemão: Nieschte. Eu esperançoso, Platão e Homero no coração. Heidegger na cabeça.  

Cuidar do seu mundo, não podíamos fazer mais de que cuidar do que podemos cuidar. Ele achava que era tarde demais. Exatamente por isto dava hoje um valor ao ser humano, principalmente para os que notava excluídos, que antes desconhecia.  

Mas não achava que adiantaria alguma coisa. Éramos apenas peões, e defeituosos, já que viciados e bipolares... Seu pessimismo acabou tornando-se exasperante. Cícero disse que preferia o direito da dúvida a um julgamento cruel.  

--- Bicho, cruel é o meu rabo. 

--- Você que é cruel com ele, não o contrário – disse Cícero sorrindo. 

Um tapão arrancou o sorriso da cara dele, bem como seu senso de equilíbrio, ele deu meia volta e caiu de maduro na cama. Enquanto isso Juarez olhava atônito a própria mão. Depois pediu desculpas e a estendeu para Cícero. 

--- Vem cá que eu te ajudo a te levantar. 

--- Vai ajudar tua mãe cuzão – retrucou Cícero com um tapão na mão de Juarez. Que ficou mais bravo ainda. Cícero saia do quarto, Juarez foi atrás. Cícero bateu a porta bem no nariz do espanhol maluco. 



                                                                                              





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