CRÔNICAS DO INSANATÓRIO–VII– A CRIPTOMOEDA DO TABACO PARTE 1

 

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Depois dessa não havia quem não entendesse seu ódio e o dimensão insana que ele ocupava em sua mente.

Vira e experimentara coisas odiosas.

Quando chegava um pacote, geralmente da família havia sempre um amálgama terrível de alegria, angústia e ansiedade. Porque os pacotes que recebiam os nóias e doidões exilados lá dentro da Luta Livre eram revistados tanto na entrada quanto na saída.

Até aí, tudo bem. Pode haver algum familiar que tope descolar droga ou álcool ou sem saber enviar algum material que pudesse fazer mal a si mesmo e aos outros.

Mas, eu te pergunto: O que pensa alguém que, quando desconfia de algum grande pacote –geralmente roupas, cigarros, mate, nada muito além de objetos de uso cotiano, e pacotes de cigarros para usarmos como moeda de troca da economia singular dos manicômios e clínicas como aquela.

A verdade prática é que a economia do cigarro imperava na Luta Livre e em todas as demais instituições que permitem o uso livre do tabaco e todo mundo sabia do valor que poderia ter um único cigarro, e Abelardo com certeza tinha plena consciência disso.

Havia uma tremenda necessidade de nicotina durante a internação, já que na Luta Livre, afora terapia ocupacional e narcóticos anônimos = coisas que Cícero não via com bons olhos, mas participava para não ficar mal na fita da Luta Livre - não havia atividade nenhuma para aliviar o ócio e o tédio pesado do dia a dia dos internos na clínica.

A nicotina como moeda de troca criou uma complexa microeconomia, em que as coerções sociais inerentes aos que nada tem eram tanto encrencas sérias quanto divertidas anedotas e uma grande quantidade de piadas humilhantes.

Ficar sem cigarros lá dentro era desesperador. Sem pó nem maconha, tudo bem. Havia a química que os deixava dopados o suficiente.

Mas sem cigarros...

Colegas ou até mesmo amigos tornavam-se inveterados, ridículos, obscenos em sua miséria. Sem cigarros havia uma espécie de desprezo social envolvendo o pobre coitado do pedinte. Filadores de cigarro. Os mendigos da economia do tabaco.

Era comum e sempre humilhante flagra-los procurando bitucas pelos cantos onde estavam os cinzeiros. Nessas ocasiões era inevitável perguntar o que faziam.

A humilhante e incômoda verdade de estar procurando bitucas sempre era negada e as mais criativas e ou alucinadas desculpas eram arquitetadas. Tanto para internos quanto para os administradores, o sem-cigarro filão era uma inconveniência desagradável, mas suportada como um leve peso na consciência.

Como no mundo exterior capitalista, mas numa moeda cujo valor é muito maior que o dólar. E muitíssimo mais volátil, do nada você pode tornar-se um miserável.

Tudo cripto, ou seja ocultos. Valor inflacionado pela necessidade de fumar e pela pressão para pagar a sua dívida. Chamemos essa moeda oculta de criptocigarro. Ela existe e funciona.

Tem data certa para vencimento.

--- Quando meu pacote chegar.

Mesma resposta sempre.

A fortuna ou a miséria de um indivíduo num lance de dados onde ele apenas pode observar. Os dados nas mãos dos familiares. A mesa é do Abelardo. A casa sempre vence.

Todos os que estão lá já foram mendigos. Geralmente logo no primeiro dia de internação onde você chega sem lenço nem documento nem internet, nem um cigarro no bolso.

Teu acesso ao mundo é cortado.

E a economia do cigarro lhe dá a primeira mordida. Você, fumante e doidão ou fumante e viciado – não sei porque, mas tanto entre alcoólatras, cocainômanos, usuários de meth e crack, bipolares, borderlines, mitômanos, narcisistas, psicóticos e outros derivados que o narrador já encontrou nas instituições que visitou por aí a esmagadora maioria é fumante e disposta a fazer de tudo para garantir seu cigarro.

Havia um cleptomaníaco que, durante uma ressô, afanara uma corrente de prata dando sopa na mesa de uma infeliz joalheria do mundo exterior para pagar a dívida cigarro quando voltasse à Luta Livre. Uma vez, durante uma tentativa de fuga que mobilizou maciça maioria dos seguranças, uma ninfo, lá dentro, pagou um boquete para o credor e foi liberada da dívida. Um bipolar em euforia atirara roupas para o alto na ânsia de encontrar uma peça para pagar sua dívida e ter mais crédito para poder comprar tudo o que quisesse.

Tudo isso graças à estimulante política de nada fazer com os internos adotadas pelas clínicas psiquiátricas e REHAB espalhadas ao longo do território nacional.

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