No Cassino com Getúlio–Argumento

 

 

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Vargas está deprimido. Getulinho, seu filho, morrera. Um mês depois seu pai segue o neto rumo ao fundo da terra. O presidente torna-se incapaz de exercer sua habilidade “spensceriana e positivista individualista” que a todos satisfazia, jogando ossos com nacos de carne para todos os lados dos alicerces de seu governo. Tanto para a base civil e a base militar, tanto adeptos dos Aliados, pois estamos na segunda guerra mundial, como dos Aliados, mas o governo tem vários simpatizantes do Eixo. Vargas está paralisado, com crises de pânico e altos índices de stress.

Em 1944, Getúlio já pressente o colapso do Estado Novo e com as mortes dos parentes, entra em crise profunda.

Vendo isto, seu amigo e funcionário mais leal, Gilberto de Andrade, da rádio Nacional, do Estado – telefone vermelho – paixão de Getúlio pelo rádio e seus artistas – toma-o pelo braço e o leva ao Cassino da Urca para ver a nova sensação de lá, Marlene.

Para tanto convida as figuras mais proeminentes do rádio à época:

Casé

Almirante

Carmem Miranda.

Em comum, todos querem ver Marlene. Alguns, como Almirante, somente para conhece-la. Outros como Casé e Andrade, querem sondá-la para futuros e possíveis contratos

Mas destacam-se a presença de Almirante e Carmen Miranda, pois, o primeiro fizera pela cantora, recém saída de um fracasso em Hollywood e deprimida pela sua fantasia extravagante de baiana em Adeus Havana que ia de encontro com seu costumeiro bom gosto e pelas críticas capciosas de seus conterrâneos, o que Andrade fizera com o presidente. Como Vargas, está tristíssima.

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E Almirante a tirou de casa para a levar ao Cassino. Alegrar-se, conversar com os amigos, viver... É uma vocação inata de Almirante, a de ajudar os amigos problemáticos. Já o fizera com Noel Rosa, talvez prolongando em alguns anos sua curta vida.

A todos Vargas observa e relembra histórias dessas figuras enquanto dá chapéu e sobretudo à uma jovem atendente da recepção do Cassino da Urca.

Vargas, então, é tomado por Andrade, adentra no reservado, os radialistas levantam-se. Ele sorri e faz um gesto para todos sentarem-se. Chama o garçom. Pede bebidas para todos.

Os drinks chegam.

Marlene apresenta-se. 77tvidzh8l_2bonmm32jo_file

 

  Ela “dança como se estivesse dançando e canta como se estivesse dançando”

Getúlio encanta-se. Quer conhece-la. Chama o “maitre”.

--- Quero-a em nossa mesa – já está sentado com os companheiros e o clima é bom.

Porém, o tempo passa e Marlene não chega.

Vargas busca-a com olhares em zoom.

Encontra-a num reservado com um homem nas sombras, copos brindando, uma garrafa de champanhe no gelo.

Revolta-se. Afinal era o presidente.

Vai até lá.

Para sua surpresa, Marlene está falando com Chateaubriand. Ele convida Getúlio para sentar, contrariado. Chateaubriand estava comendo Marlene com palavras e olhares e a temperando com bebida. Fica bravo com Getúlio:

--- Olha, dr. Getúlio, no Catete e no Guanabara quem manda é o senhor, que esses são lugares de presidente, mas aqui, no cassino, manda qualquer pessoa que possa. E eu aqui posso mais que qualquer um. Inclusive mais que o senhor.

Getúlio ri.

--- És invencível, dr. Assis.

--- Sim sou – vira o copo de champanhe, enche-o novamente, vira-o de uma golada só. Encara Getúlio, os olhos vermelhos, alcoólicos:

--- E o senhor, dr, acha-se invencível também, não é mesmo? Nem a radio Tupi dos meus diários associados chega aos pés da sua Nacional. Parabéns senhor presidente. Sua rádio sozinha derrotou toda a minha cadeia nacional. E ainda sou obrigado a transmitir aquela porcaria que o dr me impõe, sabe o que é, não é mesmo? Oras, meu caro, a Voz do Brasil. Mas isso não vai durar para sempre, senhor presidente, escute o que lhe digo, pois lhe prometo.

--- Não entendi sua promessa dr. Assis...

--- Pois bem, vou ser mais claro. O rádio morreu e não sabe. Acabei de chegar da América. Há uma nova tecnologia que transmite imagem e som para um receptor que não só reproduz os sons, mas também, as imagens. Como um cinema em casa. É a Television. Televisão. Já comprei a tecnologia. O planejamento já está feito e a Televisão, ou TV, será implantada aqui em 1950. Só tinha um problema que o senhor acabou de me dar a inspiração para resolver.

--- E o que seria?

--- Tenho a tecnologia e tudo o mais, mas não tinha os profissionais. Mas, depois de falar com o senhor, vejo-os daqui de onde estou...

Getúlio sente um calafrio. Olha para seu reservado onde bebe-se, fuma-se e ri.

--- Sim, senhor presidente. Os profissionais virão do rádio, da sua amada Nacional para a minha folha de pagamento. Os seus amigos serão meus funcionários. E a Nacional será apenas uma sombra do que era.

--- O senhor é cruel com quem sempre lhe tratou e o considerou muito bem, senhor dr.

--- A natureza é cruel? Não, meu senhor, ela é adaptativa. A tecnologia, como a natureza tem que evoluir. E os que não seguem sua evolução...

---... são extintos.

---... tornam-se obsoletos, meu caro dr. Presidente. Só estou lhe aconselhando. Não se torne obsoleto. Isso sim, causaria a sua extinção.

Getúlio fica perplexo com a conversa. Fecha-se em copas. Olha para Chatô abismado, mas firmemente, como quem espera uma confirmação do que ouviu que só os olhos podem dar. Chateaubriand percebe o olhar e ri.

Marlene que a tudo assiste, fica compadecida de Getúlio, toma-o pelo braço e o reconduz a seu próprio reservado, onde senta-se a seu lado e imediatamente começa a conversar com o presidente.

É mais um monólogo, pois Getúlio responde automaticamente. Vai se perdendo cada vez mais profundamente em seus próprios pensamentos.

Ele observa atentamente os amigos, são amigos, muito mais que funcionários. “Veja o Andrade, o que fez para me alegrar, sinta o amor com que Casé conta suas peripécias inovadoras, envolva-se com a ternura de Almirante que tentou salvar Noel Rosa e agora tenta fazer o mesmo com Carmem. Mas a mim, só eu mesmo posso me salvar...”

E interiormente relembra a história de cada um deles entremeada com a sua própria história até aquele momento.

Marlene interrompe o seu devaneio, zangada por ele não prestar atenção nela, enquanto muita gente só vinha ali por causa dela.

--- E ainda por cima lhe salvei de um massacre verbal, dr Vargas.

Vargas envergonhado, desculpa-se com Marlene. Oferece champanhe como compensação.

--- Não seja como aquele seu amigo que te afetou tanto assim. O senhor é do Rio Grande. Peça uma bebida de lá para o senhor matar a saudades e ao mesmo tempo apresentar-me à sua terra, dr. Getúlio.

Getúlio sorri, concorda. Pede duas Canhas, aguardente azul típica do litoral sul e muito apreciada – secretamente por Vargas.

--- E duplas, acrescenta Marlene.

Bebem. Getúlio pede para ela apresentar-se de novo. Quer ter ela na memória, sua voz, música e movimentos, não um homem que pensara ser amigo, mas revelava-se inconveniente, fanfarrão e invejoso.

“E ainda assim verdadeiro...” Uma voz inconsciente ficava rodando sua mente e Vargas quer se livrar dela de uma vez por todas. Quer a todo custo reconciliar-se consigo mesmo. E crê que ver Marlene é o que precisa no momento. E mais uma dose de Canha. Dupla. E um Corona cubano.

Ela é ainda crooner, pode apresentar-se várias vezes e não hesita em atender o pedido de Vargas. Ama o que faz. E o faria a qualquer momento ou a noite inteira, caso precisasse.

Enquanto ela faz a sua performance, Vargas imagina a trajetória de uma garota tão talentosa e de maneira de cantar tão diferente, pois ela canta e interpreta e vice-versa. Nunca fica parada enquanto canta.

E ao fazer isto, mergulha no futuro de Marlene e no seu próprio.

Até que uma explosão sacode seu coração.

E, naquele momento, exatamente como dali a dez anos, no momento do tiro fatal, toda a sua vida lhe passa a mente, arrancando-lhe um sorriso de satisfação.

Pois entende que seu passado de conquistas e derrotas, seu presente sofrido e o seu futuro sombrio previsto por Chateaubriand, são únicos e singulares. E se morresse agora, ou em qualquer momento do futuro ou do passado, extinto, obsoleto, esquecido, morto, apagado da memória nacional pela qual tanto brigou, mesmo assim, sua vida não terá sido em vão.

Afinal ele é humano...

“Dos muy buenos!

Ele ri diante desse pensamento. Solta seu riso rouco de satisfação. Uma gargalhada tão contagiante, que, mesmo sem nada entender, juntam-se de maneira honesta e sincera, seus companheiros.

E Vargas teve certeza que quando a hora chegasse, ele a honraria em paz.

 

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Comentários

  1. Sensacional. Li com crescente interesse. Terminar toda essa hostória com uma gargalhada... que percepção. Grande abraço

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    1. Puxa vida, meu amigo. Você simplesmente salvou meu carnaval. Obrigado por isto. Grande abraço p você também...

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