OS AMORES CRIMINOSOS–VISÕES NUM COLCHÃO DE PENAS

clip_image001[19]
Não nos desgrudamos mais. Moravamos onde nascia o sol. Vivíamos onde roncavam os motores dos carros. E a grana fácil. Você acha que hoje é difícil viver de malandragem, não conhecia Julia.
Julia não era malandra. Achava que o mundo era dela, feito pra ela e pronto. Agia assim, se queria deitar num colchão à mostra numa destas casas de varejo da vida, deitava. “Tenho 25, finalmente confessou, pais mortos, recusada pela família, puta por necessidade, bandida por salvação e você quer que eu me contenha, nem por um cacete”, dizia quando falava para ela se conter. Mas não se continha. E deitava no colchão com um charme, com um ar de proprietária, olhando o resto da loja como se nada houvesse, como se já planejasse o arranjo dos móveis da sua casa para receber aquela grande cama king size com colchão de penas de ganso. E o otário do Gerente ficava com os olhos girando como caixa registradora, pois Júlia era linda e sempre elegante. E eu não podia ficar para trás. Ricos consumidores se divertindo num varejo popular, dava prá sacar no sorriso do gerente, coitado.
clip_image002[16]
--- Vou ficar. Pode botar no carro – dizia enquanto piscava o olho para mim que me dirigia para o caixa.
Eu demorava, fingia que não achava a carteira, quando finalmente achava, o que saia do meu bolso era um 32 que colocava debaixo do olho do caixa, bem na surdina, o corpo tapando a visão de todo mundo.
--- Uma bala pelo colchão, tá bem pago, irmão.... Só o colchão que meu amor gostou, mais nada. Pode liberar ou vou ter que pedir troco.
Os caixas não eram burros. Liberavam. Em troca eu tirava uma selfie com o rosto coberto e apontando o revolver pro caixa. Meia hora depois mandava pro celular do Gerente. Livrava a barra dele. E caíamos fora com o colchão sacolejando no carro da hora. Os ladrões do selfie, era como nos chamavam nos telejornais matutinos das pequenas cidades. Cidade grande, nem pensar. Muita morte matada nas minhas costas, muitos clientes, muitas encomendas.

O mercado da morte por encomenda nunca para e é tão volátil quanto uma bolsa de valores. Estava cheio. Tinha o péssimo costume de acompanhar minhas mortes. Seu desenrolar. Conseguia identificar o problema do meu cliente. E nunca uma ação direta minha foi a solução. O mundo é feito de Hidras de Lerna. Arranque uma cabeça e nascerá não uma, mas, hoje em dia, três, uma mais perigosa que a outra. O assassinato era uma excrescência, um anacronismo, uma forma ancestral de justiça subjetiva inútil, mas necessária para o ego do cliente.
E estava de saco cheio das subjetividades egocêntricas de meus clientes. Um colchão de penas de ganso. Tão simples, tão a mão, tão presente e agora.... Tão Julia e vida. Absolutamente singelo e simples. Como a vida deveria ser. Como pretendo fazer com que seja. Claro que fiz a alegria de Julia...
A noite, nas vias secundárias, sempre há trilhas convidativas e sombrias. Nelas enfiamos o colchão. Deitamos. As penas de ganso eram um contraste bem vindo à dureza da terra batida de areia sob nossos corpos. Nosso primeiro bem comum, um colchão. Julia atirou-se nele:
--- Adoro gansos. São bichos incríveis. Tão desengonçados na terra, tao lindos no ar. Leves, selvagens, tudo aqui, amor, embaixo de nós. Somos leves e selvagens, nãosomos...
--- Leve, eu.... Ri alto. Não podia me considerar leve. Minha profissão não era agradável. Matar nunca é. Mas eu era bom no que fazia e me orgulhava disto. Como qualquer contador se orgulha de organizar o livro de contas de uma empresa caótica. Eu organizava vidas. Sim. Organizava, sim senhor. A vida é caos, carinha. Só a morte é ordem. Sossego. Sem pensamento, desespero, felicidade, prazer ou dor. Tudo o que os livros sagrados falam que não são nada. A vida é nada. A morte é tudo. Não gostava de matar, mas amava a certeza da morte. E me considerava parte dela. Sem traumas.
Julia era outra coisa. Eu a amava. E não queria saber de sua história a não ser aquelas que contava. E também não queria saber se eram verdadeiras ou não. Ela simplesmente era sincera no momento. E não queria mais nada dela. A sinceridade do momento, pois o presente me condenara, o futuro me excluíra e o passado, bem caso o passado cobrasse suas dívidas, poderia simplesmente pagá-las, ou lutar para não pagá-las e permanecer vivo.
Mas eu estava com Julia. Foda-se o passado. Foda-se o futuro. Tirei o colchão de penas de ganso do capô do Maverick roubado na última hora, estendi no chão, improvisei um cobertor com as mantas de campanha que havia no carro. Deitamos. Olhamos as estrelas.
--- Você acha que elas são infinitas ou que podemos conta-las – ela perguntou...
---- Não consigo contar por muito tempo, então acho que elas devem ser infinitas....
--- Podemos ser como elas, Jonas... Um grande brilho no escuro... Para todo mundo ver.....
Ri.
---- Um grande escuro na luz, você quer dizer, Ju....
---- Seu espírito é iluminado, amor.... eu vi.... eu posso mostrar...
Ela me segurou as mãos. Tirou uma caixa de fósforos de algum bolso escondido em sua micro saia.
---- Vamos brilhar... Acende o fogo.
É apenas uma chama pálida, ondulando violentamente no meio do vento da noite. Mas sua cor não está certa. A chama é verde e muito mais quente que o normal. Ilumina seu rosto com tonalidades antinaturais de clarezas verdes. Ela esta de boca aberta recitando frases que não consigo ouvir. Ela deixa o palito cair.
Um círculo de fogo se forma no colchão.... Envolve a nós dois. Vou gritar, mas não sinto dor.
Apenas um clarão enquanto uma constelação mostra o caminho de meu destino em meios a gansos em imigração. Voos. Mais altos. Estratoféricos. Asas de Titanio. Motor Atômico. Um rifle sniper, um silenciador, um homem de prestígio e rosto de fera sendo saudado num palácio de concreto. Eleito. Rugindo em algum lugar do país. Em um instante ele está lá, o rosto de fera do homem na mira, o dedo num movimento suave apertando o gatilho. Não o barulho do disparo. Fogos de artifício e luz violenta..
No outro de está de volta ao colchão, Julia ao seu lado, o horizonte, quase claro, diz que, agora, ele sabe o caminho das estrelas.... Um caminho que ele trilha há muito tempo, uma estrada de assassinatos, balas e mortes. Mas que chegará ao final. Mais uma bala, um grande tiro, o maior de sua vida.
---- Sim, meu amor – murmura Julia ao seu lado --- uma bala, um novo país, um novo presidente. Só por diversão, porque a gente pode. Porque as penas de ganso gostaram da idéia... Mesmo que outros piores ocupem seu lugar.... Não custa nada divertir-se com o desespero... Quem que viver para semrpre.

Sorrimos em nosso delírio. Julia, a Morte e eu.
image




Comentários

Postagens mais visitadas