UM ACORDO AMORAL

 

cumprimento

 

Sempre que via Evaldo circulando pelo pátio da clínica de reabilitação onde estava, sentia compaixão e alívio.

Compaixão por sua história de estupidez e violência que o levara ao estado de semicatatônice em que estava.

A clínica de reabilitação mental.

Para drogados e pessoas com transtornos mentais.

É o meu caso, sou bipolar e havia sofrido um tremendo surto de depressão.

Mas isso é outra história...

Evaldo havia sido flagrado pela polícia dando um 2zinho. Ficou apavorado, cometeu a estupidez de fugir. E ser perseguido. Ficou mais apavorado ainda.

A viatura se aproximou dele para força-lo a parar. Ele jogou o carro contra a viatura. A viatura capotou. Dois policiais voaram pelo para-brisa manchando o asfalto de sangue, fragmentos de ossos e miolos liquefeitos.

Morreram bonito, coisa de Hollywood.

Puro pânico irrefletido e estúpido de um garoto de 20 anos, estudante universitário, que não sabe absolutamente nada sobre as coisas legais e ilegais.

Afinal o que é ser pego fumando um baseado para o mundo jurídico?

Posse de drogas para consumo pessoal.

Não dá nada: prestação de serviços para a comunidade, cestas básicas, multa de salário mínimo. Uma merreca, quase nada.

Seu pânico o levou a cometer homicídio doloso, ou seja, quando, no feito, há intenção ou risco de matar o outro.

Caso de tribunal do júri.

Mas ele não foi julgado.

Foi condenado no local.

Espancado até perder não só a consciência, como a lucidez.

Irreversivelmente.

Incontáveis e profundíssimos traumatismos cranianos.

Os tiras sabiam que, mesmo indo ao júri, Evaldo poderia safar-se fácil.

Réu primário, estudante competente, falando um inglês quase fluente, um futuro que seus pais achavam que seria brilhante e que o ótimo advogado que contratariam para defender o filho – gente de muita grana - não teria dificuldades de provar violência policial, rebatendo o peso das mortes que recaiam sobre as costas de Evaldo.

15 aninhos no máximo e estaria em condicional, quase livre leve e solto.

E com isso a polícia não podia se conformar.

Muito menos com a bizarra visão dos corpos de seus colegas, reduzidos à uma mera massa rosácea estendida de maneira bizarra e retorcida na estrada.

Desceram a porrada com gosto em Evaldo.

Mataram sua lucidez por um senso de moral de justiça peculiar à corporação.

Mataram sua sanidade porque a justiça seria branda com ele.

Mataram seus sonhos porque sabiam o sistema jurídico não é legal com a polícia. Aos seus olhos eles prendem, o juiz solta, pois, os magistrados não veem a real dura e crudelíssima que as ruas lhes mostram.

Aos olhos deles, naquele momento de fúria e dor, o sistema jurídico brasileiro era absolutamente monstruoso e ilegal.

Revoltaram-se contra o corpo e a mente de Evaldo.

Graves lesões cerebrais fazem-no parecer algo entre um down e um esquizofrênico enquanto circula em passos incertos, quase babando pela clínica de reabilitação mental.

Porém, cá entre nós, talvez seja melhor assim. Não cairia bem para a corporação policial o público vir a saber desse espancamento e suas horríveis consequências. Não cairia bem a família – gente de grana - o público vir a saber que o filho havia matado dois policiais.

Os interesses em comum levaram corporação e família entrar num acordo.

Evaldo permaneceria o resto da vida como interno, permanentemente dopado, para que não se lembrasse do ocorrido e tirasse suas próprias conclusões sobre o fato.

E é claro, ficasse de bico fechado.

Babando. Quase catatônico. Esquizofrênico com Down.

O preço da justiça que se é feita na irregularidade, na marginalidade é sempre o mesmo: a dor de outro ser.

Há algo de ritualístico nisso. Um sacrifício humano restaura a ordem “natural” das coisas. O sangue cobra e deve ser pago com sangue.

A violência, mesmo inconsciente, sempre gerará violência.

Sim, é amoral, quase imoral, mas funciona e é assim que as coisas são. Tragédias fazendo estranhos parceiros de cama em acordos por trás dos bastidores e grana não rastreável.

Só não vê quem não quer.

Como Evaldo não via direito...

E pensando nisso seguro uma lágrima ao mesmo tempo que suspiro de alívio.

Não sei o que faria caso tivesse plena consciência de ter tirado a vida de dois seres humanos. Talvez me matasse, talvez ficasse louco, talvez matasse.

Então talvez seja melhor assim até para Evaldo.

Ele é um bom sujeito. Joguei xadrez com ele. Perdi todas. Inteligentíssimo, o garoto. Caso lúcido fosse tenho certeza que não suportaria saber que havia tirado duas vidas por tamanha besteira.

E sabe-se lá o podemos fazer quando descobrimos que perdemos nossa alma por nada...

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