MEETS COM UM AMIGO

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Bem, não diria um amigo, o correto é O amigo. Meu melhor amigo. Um dos únicos que sobrou. Que eu saiba tenho 3. Amigos homens.

O resto de meus amigos, não muitos, são mulheres. Acho-as muito mais interessantes do que os amigos que perdi se tornaram.

Nostálgicos, repetem sempre a mesma façanha, variando pouco as palavras.

As mulheres não, todo dia um assunto, uma reflexão, um sofrer, um prazer, um drama e tanto as mulheres.

Prefiro ter amizades femininas que masculinas, mas isso não vem ao caso.

O caso é que ontem fizemos uma vídeo chamada via Meets. O caso é que foi uma falação só. Há anos não nos víamos.

Não sei como ele me viu, mas não consegui segurar um sorriso de satisfação e orgulho.

Ele estava lindo.

Apesar da barba indicar os sinais de sua maturidade, seus olhos de moleque brilhavam. Seus gestos de moleque entusiasmado eram verdadeiras dádivas aos meus olhos. Rugas e pés de galinha davam charme a esse moleque.

E a barba com o visual exato que as mulheres adoram, o grisalho mais realçando sua beleza do que refletindo a idade. Sendo professor de Cinema numa universidade federal, deveria estar fazendo um baita sucesso. Falei isso para ele.

Ele nem tchum, estava entusiasmado, falando como seu documentário, Lupi, sobre Lupercílio Rodrigues fora bem recebido em Portugal. Mas sua molequice se manifestou quando me contou da exibição de Lupi em Tiradentes-MG.

Exibição ao ar livre com direito a carrinho de pipoca e cachorro quente e refrigerante.

Pois bem, e não é que 500 pessoas apresentam-se alegremente para assistir Lupi? Meu Deus, nem consigo imaginar o que ele sentiu, acompanhando essa projeção. 500 pessoas numa exibição ao ar livre? Melhor do que qualquer avant première em Cannes, isso posso te garantir.

E a responsa. Ele, agora, com um público desse, não pode falhar. Ele não, que, pobre coitado, só pode observar. Lupi é que deve cumprir essa missão: Satisfazer 500 pessoas.

Meu amigo confessou, ele que não leva religião a sério, que naquele momento rezou para que pouca gente abandonasse a exibição. Calculava que haveria deserções.

E quase caiu das bases quando um carinho estilo rastafári levantou-se e deixou a praça.

Suou frio: é agora, onde passa um boi passa uma boiada, todo mundo vai vazar daqui, estou f...

Conteve uma gargalhada de nervoso, mas não um suspiro de alívio quando viu o rastafári voltando com uma latinha de cerveja na mão.

Quase beijou o cara, mas conteve-se, disse-me ele.

E todo mundo ficou até o fim, atestando a qualidade de Lupi, um documentário para lá de esperto sobre um homem que teve tanta importância na MPB e que vamos cada vez mais esquecendo.

Eu mesmo só lembrava de Lupercílio Rodrigues como uma espécie de mito de talento e bebedeira. Conhecia nada do sujeito e encantei-me com sua sabedoria real e popular.

E da maneira que meu amigo mostrou isso, vou te contar, não é porque é meu amigo, mas é realmente sedutora.

Começa com planos de comerciais antigos sobre bebida e fosse, um dos temas ou senão o tema de Lupercílio.

Já me ganhou aí. Como deve ter ganho o público, pois quem não curte um bom comercial. Ainda mais da velha guarda.

Um começo que só uma mente jovem pensaria.

Meu amigo também teve a sacada de abolir o narrador aquela voz que narra asa imagens tentando imitar a voz de Richard Attenbourg. Chato pacas, o tal narrador. E em Lupi ele só existe em três momentos. Por pura necessidade para expor claramente as ideias do filme.

Lembro também de ficar de queixo caído com a performance de uma mulher cantando uma música de Lupercílio apaixonadamente, desbragadamente, como se naquela música estivesse contida sua alma. So depois meu amigo entre risos esclareceu que era uma trans. Bem, naquele momento ela era outra coisa, retruquei, mais que trans ou mulher, era o espírito da boêmia que Lupercílio amava.

Pois os trans como essa maravilhosa intérprete cujo nome não conseguirei lembrar, desculpem, são os últimos cavaleiros da boêmia.

Sua resistência e sua força hoje, nesses dias onde ninguém mais consegue ver ou viver a poesia do boêmio, como Noel Rosa, Nelson Rodrigues e o próprio Lupercílio Rodrigues.

De qualquer maneira chorei quando vi a lágrima escorrendo pela face da interprete e isso é o que me mais marcou.

Também há uma cena com Gil falando sobre Lupercílio na Academia Brasileira de Letras. Seja lá quem mais estiver lá, ele é o melhor porque Gil é Gênio.

Sua dissertação sobre Lupercílio me deixou de boca aberta, não sabia nada doquele aquele preto velho e sábio me dizia. Incrível sua categoria precisão e estilo para falar, meu amigo deve ter dado pulos de alegria com tal depoimento.

E o final de Lupi, deixa-nos com vontade de abrir uma cerveja, ou, melhor, um uisquezinho...

Bem como iria adorar Lupercílio.

Meu amigo realmente sacou sua alma.

Assim como ele me saca.

Ao terminarmos a conversa sobre Lupi, estava emocionado. Fora o primeiro a ver o documentário. Ele me confiara a missão de ver a possibilidade de cortar 10 minutos de seu doc. Missão impossível. Com a eliminação do narrador o documentário tornou-se leve e enxuto. Havia muito pouca coisa para cortar. Sugeri poucos cortes, alguns com dor no coração, outros com certeza absoluta.

Ele curtiu minhas sugestões, diz que adotou-as. Acredito. Alfredo Manevy nunca mentiu, traiu, maculou nossa amizade, nem seus ideais.

Continua um moleque cheio de arte p dar.

Criativo, nunca o mesmo assunto, piadista, bont vivant de invejar, mesmo com o pouco que tem, extrai disso o gosto da vida. E tem a barba, claro...

E extrema paciência com minha grande e faladeira matraca.

Bem, tudo isso, só para justificar uma frase que para ele, bem como para todos os amigos que me restaram posso falar sem medo:

Cara, eu te amo...

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