CRÔNICAS DE AMIZADE–iv - kIKA

 

Nikayou_manga

 

Garanto que se alguém nos visse conversando enquanto faço Pilates sob sua vontade, esse sujeito logo tiraria conclusões precipitadas.

Principalmente se não conhecessem minha “sensei” e eu. Nem a linguagem dos parceiros de esportes. Íntima. Um conhecendo o corpo do outro de cor e salteado sem nunca ter tido contato.

Sim, esse contato que você está imaginando. Pois quando os corpos são íntimos, a expressão corporal muda.

Para uma proximidade tal que confunde os analistas de plantão. Confundem tudo com sexo puro.

Quando os parceiros de esportes sabem muito bem que sexo não há.

Há outra coisa. Mais profunda e próxima do que o simples atrito dos corpos. Uma amizade que se desenvolve mais com o bem-estar d’alma do que do físico por si só.

Quem pratica esportes conhece com a palma da mão a alma do parceiro. O lado físico é fatigado enquanto se conversa, uma conversa olhos nos olhos, direta, aberta, sem segredos.

Já não há mais, cor, sexo, gênero, idade, ideologia ou religião, ou qualquer outra barreira que possa impedir o amálgama de dois seres humanos.

Há apenas dois corpos treinando e duas almas conversando de uma maneira pura, simples e direta.

Fico bêbado com isso.

Ela ri quando eu digo:

“Kika-sama”, eu sempre brinco,

“A Senhora do Pilates-Saquê”.

Sempre me deixando ébrio de endorfinas com caralhadas de exercícios.

E tem outra, quem ousa pensar em outro tipo de intimidade que possamos ter, não conhece a Kika.

Bem, também não posso julgar....

Eu confesso que me enganei no começo.

E sofri de uma paixonite fogo de palha por ela que logo se extinguiu.

É paradoxal, eu sei, mas é inevitável sendo a Kika quem é...

A Garota Mais Legal da Cidade, como diria o velho Bukowski.

Eu topei com ela há mais de 5 anos, numa academia, horário morto, onde me matava para voltar a treinar duro.

Musculação e natação.

Ela diz que ficou com dó, não me conhecia. “Quem é esse louco se matando?” E foi ajudar. Passou o treino. Treinei.

Conversamos sobre mangás.

Infelizmente para mim, só curto os de samurai. De época: Vagabond, Lobo Solitário. Blade, a Lâmina do Imortal.

Ela conhecia uma paulada de histórias que nunca tinha ouvido falar.

Uma memória extraordinária, e, nas palavras dela, um mangá que considerei tonto, tomou brilho e novos significados quando ela me recontou sua história.

Fiquei de boca aberta com sua capacidade oral. É sempre um prazer ouvi-la contar as histórias de seus heróis – muitos foram adotados posteriormente por mim.

E para minha grata surpresa, soube que muitos dos meus amados personagens de seriados japoneses de minha infância ainda estavam vivos.

É claro que fui tentar assistir.

Não teve o mesmo charme, suas versões atualizadas. Falei isso para ela no outro dia...

“Ou você que perdeu a infância, Mauricio?”

Questionou-me, aquela garota. E muito bem questionado. Perdi a memória de minha infância mesmo. E dói saber o quão valiosos são os valores que perdi com essa. Pisou no calo sem dó.

Falei isso pra ela.

“Mas você precisa resgatar sua infância perdida, homem, temos que acordar sua criança interior.”

E desde então, me apresentou a um monte de coisas, seus amigos, seus hobbies, o melhor da cultura nerd que havia perdido durante o longo e frustrado casamento a que minha libido se submeteu. Mas isso é outra história.

Nada funcionou. Mas devo reconhecer que foi divertido. Apenas senti-me estranho jogando algo como RPG, que amaria jogar há 30 anos atrás mas, quando participei de uma mesa de aventuras, senti-me deslocado para um limbo temporal, onde não sabia mais me localizar.

Não sabia se era o presente ou o passado o que estava na minha frente.

É o verdadeiro encanto do jogo, esse deslocamento temporal.

Mas me confundiu todo e preferi sair a francesa.

Ela pareceu apenas triste.

Demonstrou o quanto gostaria de me ver feliz, mas não ficou sentida com minha retirada estratégica.

Ah, Kikinha, se você soubesse...

Se escrevo, é porque você me empurrou para isso.

Ainda lembro quando te falei sobre o assunto, a frustração de não escrever...

Havia me separado recentemente e todos os meus livros ficaram na antiga casa.

E, sinceramente, tão mal terminara meu casamento, que não voltaria para busca-los.

Sem livros de referência – Asimov, Clark, Ursula K. Le Guim – não conseguiria executar meu plano de escrever ficção científica B, space-operas e tudo o mais, expliquei para Kika. Tim-tim por tim-tim.

E ela: “Mas o que você precisa é informação ou estilo?”

Fiquei intrigado. Nunca havia pensado sob essa ótica. Informação eu já criava à beça, mas estilo... Não tinha um estilo definido. Por isso andava com a santíssima trindade da ficção-científica prá lá e prá cá buscando respostas estilísticas...

“Estilo!” respondi.

“Mas se isso é o que você tem que descobrir sozinho, porque você simplesmente não escreve para ver o que sai?”

E saiu mesmo. Usei a ficção científica como ferramenta para fragmentar a linguagem com brincadeiras visuais e bom humor. Tudo no MEU estilo. Talvez seja um lixo, talvez não. Não depende mais de mim. Fiz minha parte. Botei para fora.

Graças ao incentivo maiêutico de Kika.

Ela é socrática sem perceber, intuitivamente, com toda a naturalidade desse mundo chega e já vai nos desarmando.

A Garota mais Legal da Cidade. Minha treinadora. Minha parceira. Minha cúmplice. Minha Amiga de todas as horas...

Ah, Kika, só você vai entender que há apenas Amor e que não há romantismo algum quando terminar este texto dizendo que, mesmo vendo você 4x por semana, minha alma está sempre sentindo saudades da tua...

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