CRÔNICAS DE AMIZADES–VII - NINNA

DEDINHOS

 

Eu a conheci via Facebook.

Disse que amaria amar uma mulher voadora. Ela curtiu, passamos a conversar muito, trocar ideia direto.

Amamo-nos de todas as maneiras que os amigos amam.

E sei que o sentimento é eterno.

Soube enquanto observava maritacas em sua horta, lá no teto onde ela aproveita para fazer suas magias.

Ninna queimava incenso e alecrim, a fumaça nos defumava com um cheiro bom. Falávamos muito. Mas fiquei quieto quando vi as maritacas.

Elas estavam nos contemplando, silenciosas.

Então soube que nossa amizade seria eterna, uma verdadeira conjunção cósmica de almas.

Somos um casal perfeito.

Como maritacas...

Muitas vezes agimos como um casal de verdade e não vejo muita distinção em nossa relação, embora sejamos amigos.

Acho que sabemos que, caso houver algo mais, o amor que sentimos um pelo outro ficará em risco.

Então casal somos, mas sempre seremos amigos.

E nunca brigaremos.

De todas as minhas relações, a que tenho com ela é a mais harmoniosa.

O Cosmos Anárquico que É, Sincroniza-se em Ordem, quando estou com ela.

E tudo vira “do Bem” e Luz...

Neste tempo juntos passamos por tantas...

Só para você ter uma ideia:

Lembro quando estávamos loucos para ir ao lançamento de um dos livros da Tamires Frasson. Queríamos matar as saudades dela Ninna e eu, grandes amigos que somos da Tami, mas com pouquíssimo tempo para nos vermos juntos.

Queríamos ao menos dar um abraço na Tamires que lançava um livro no espaço cultural mais descolado da cidade, na época.

Eu, debilitado por um problema sério no coto da perna esquerda – usava prótese - estava numa cadeira de rodas e esgotado com a fisioterapia e as atividades físicas intensivas necessárias para voltar a andar. Também era preciso afastar o risco de reamputação.

Ninna, que, por esses tempos, trabalhava duro a semana toda, estava cansada da correria de compras semanais aos sábados, único dia onde dispunha de tempo para fazer tudo o que a casa necessitava, ajudar a filha num trabalho extra e ainda cuidar do filho, totalmente deprimido com agorafobia.

Queríamos paz e amizade. Diversão, caso lá a encontrassemos.

Mas tinhamos, ambos, pouco tempo. Ninna não podia deixar o filho só. Eu ficaria até o cansaço reclamar. Sabíamos de nossas limitações, mas estávamos felizes com o encontro. Foi quando, no carro, ela me disse:

--- Vc sabe onde fica?

--- Sei sim, daqui a pouco a gente está lá. Mas vai ser um salto no escuro...

--- Como assim?

--- Não sei se tem acessibilidade.

--- Ai, meu Deus... Achei que você soubesse.

--- Eu resolvi arriscar... A gente para, vê e vai.

--- Beleza.

E assim chegamos lá.

Necas de acessibilidade.

Havia degraus e escadas.

Para mim, pareciam muito, muito altos.

Forçei um sorriso, pedi ajuda.

Apareceu um jovem de camisa social que logo de cara simpatizou-se com o sujeito na cadeira de rodas e se voluntariou:

--- Ei, amigo, pode se apoiar em mim.

Abraçei-o e ele me ajudou a subir a escada que dava acesso ao evento.

Pulo a pulo, vencemos os degraus um a um e o jovem me guiou até a cadeira de rodas que, lá encima, esperava por mim.

Ninna dera um jeito naquilo.

O lugar era um prédio centenário replanejado para abrigar com intimidade e conforto eventos culturais. Havia até um bar muito bem montado e a todo vapor. Perfeito.

“Mas prédios centenários tem corredores estreitos” pensei, engolindo em seco e calculando o espaço necessário para passar de uma sala a outra com a cadeira de rodas.

Mas já estava encantado com o lugar. Adorava aqueles prédios.

Quando Ninna me perguntou o que queria fazer, repondi:

--- Explorar o lugar.

Havia livros, numa sala ao lado do bar, uma decoração para lá de bem feita, uma luz ideal. Um loungèe com um sofá e simpáticas mesinhas circulares de rua, com aqueles maravilhosos bancos altos de madeira.

Mas além dos corredores estreitos, muita gente. Circulando e apertando os acessos estreitos às várias salas do lugar.

Desisti da exploração.

Seria muito difícil mover-se com o trambolho grandão que era minha cadeira de rodas. Bem ainda é...

“Sempre há uma alma caridosa” Ninna disse quando eu lhe comuniquei minhas preocupações com um olhar ansioso. E Nina sorriu para mim.

Avançamos.

Chegamos até a sala onde estava rolando um show ao vivo. Eu conhecia o cantor. Era muito bom e gostava muito de ouvi-lo cantar.

Estavam à frente da mesa de hours-d’ouvre do cocktail do lançamento do livro da amiga escritora.

Mas a música estava tão boa e era a última... Aproveitamos o momento.

Nem notamos que barravam o caminho para chegar aos comes.

Até que um surto de fome abateu-se sobre os convidados que atropelaram-se sobre nós rumo aos salgados. 

Alguns dos convidados conseguiam desviar-se, outros  nos esbarravam e, ainda, havia os casos onde eu e Ninna nos desviávamos.

Impossível ficar lá.

Nesse momento fomos salvos pela última nota musical do show.

Cumprimentamos o músico amigo e demos no pé dali.

Fomos para a área de serviço, ao ar livre, onde havia algumas rodas de bate-papo.

Mais sossegada, ela foi ao bar fazer os pedidos.

Eu fiquei observando as pessoas.

Até que as pessoas recomeçaram a esbarrar em minha cadeira de rodas.

Como estava num bom papo, não me dei ao trabalho de me importar.

Mas, as pessoas começavam a borbulhar, não paravam de chegar. Ninna no bar...

O espaço sumia, eu queria sumir junto com o espaço, pois era, a esta altura do campeonato, impossível evitar colisões com a cadeira, tornara-me um transtorno, envergonhava-me.

Era um avestruz. Queria botar a cabeça num buraco. Passei mal.

Quando ela voltou com os pedidos, teve um susto com a multidão. Ela parecia cair sobre ela, não lhe deixava respirar.

E ficou claustrofóbica.

Não conseguíamos falar com a Tami. E não, não conseguíriamos falar com ela de maneira alguma, não com ela tão ocupada em atender o fluxo constante de pessoas que não paravam de chegar. Não havia tempo nem espaço para aquilo.

Caimos fora rapidinho, sem o livro nem o abraço da amiga.

Ele na frente, uma cadeira de rodas alegórica que servia como abre alas, Ninna atrás, uma porta bandeira, caso bandeira houvesse.

Eventuais mestres salas, atentos ao desfile inusitado, anunciavam sua passagem, e assim, em ritmo de escola de samba e carnaval mambembe, cruzamos novamente as salas e a multidão rumo a saída.

E, na fatídica descida das escadas, eu reencontrei o músico seu amigo, que me abraçou e levou-me em segurança à calçada rindo:

--- Para lembrar aqueles abraços de antigas bebedeiras, meu velho.

Ninna, já estava lá na calçada esperando com a cadeira.

Os dois, aliviados, resolvemos fumar um cigarro.

--- Somos estranhos, não? – ela disse.

Nina fez um círculo com os dedos com que segurava o cigarro, a fumaça envolvendo as pessoas lá dentro.

--- Sim somos...

Olhamos novamente as escadas, agora pequenas... As pessoas lá dentro, apenas cacofonias. Nossos problemas tão leves…

E, sem mais, começamos a rir.

Chamamos a atenção das pessoas que, também na calçada, fumavam.

Rimos mais ainda.

Até que o sol caiu rubro, dando-nos o sinal para voltar para casa.

Ah, Ninna, uma crônica é pouco para mostrar o amor que tenho por você, então prefiro deixar essa lembrança, que talvez você não se recorde, mas está cravada como uma doce adaga dentro do meu peito.

Cravadas em mim, minha querida.

Você e sua doce lâmina do amor....

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