UMA NOITE NA URCA COM GETÚLIO–VI-DE DEVANEIOS EM CONVERSAS COM MARLENE

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--- A culpa é minha, senhor Presidente, eu estava saindo do palco quando aquele senhor me chamou com um drink. Estava com a boca seca. Não pude resistir.

Sabe, senhor presidente....

--- Por favor, chame-me Getúlio.

--- Tudo bem, sabe Getúlio, amo ser crooner. É cantar para dançar, a coisa mais gostosa do mundo. Eu me entrego quando estou no palco e sinto muita sede depois... Insuportável. E quando aquele senhor me ofereceu um drink, não resisiti. Ele não parece gostar de você, Getúlio...

--- Pois nunca lhe dei motivos para tanto, a não ser politicamente, talvez.

--- Ah, não me fale de política. Não entendo nada disso. Eu gosto mesmo é de cantar. Sabe que fugi de São Paulo para cá só para poder cantar? Meus pais recusaram um contrato com a Tupi que foi onde conheci o dr. Chateubriand, Getúlio. Então não aguentei e...

Mas Getúlio já está com seus pensamentos em outro lugar. Olha para os companheiros de mesa. Todos profissionais apaixonados pelo Rádio e sua linguagem. Acreditavam piamente que contribuir para o desenvolvimento do meio de comunicação era sua missão.

“Como poderiam me trair? Passar para outro meio de comunicação que mal consigo imaginar? E porque não, o novo sempre supera o velho, não é verdade?” – pensou Getúlio, abaixando a cabeça, deixando-se levar novamente pela tristeza.

Novamente de luto.

Mas um luto mais profundo porque trazia a promessa de uma futura perda e uma morte não física, mas de parte d’alma.

O Rádio. A Nacional. Sua paixão.

Getúlio sente os olhos queimando.

Há anos não sentia vontade de chorar.

Mas agora precisava de toda a sua força de vontade para não passar vergonha na frente de Marlene.

Afinal, ela nada entenderia, poderia pensar que ele era um fraco, um delicado que não aguenta sequer a cutucada de um inimigo.

Como ela poderia imaginar toda a dor que havia passado e julgara ter superado?

Mas ela voltava. Mordia-lhe o ventre, arranhava sua garganta, matava-lhe a voz.

PLEC-PLEC-PLEC-PLEC-PLEC fazem os dedos de Marlene, quando ela os estala na frente de Getúlio.

--- Senhor Presidente, aqui é a Terra falando. Marlene à escuta, alô, alô, tem alguém aí.

Getúlio volta a si num pulo na cadeira.

Marlene ri.

--- Onde estava, Getúlio.

--- Divagando, menina Marlene, divagando...

Marlene faz biquinho. Entrelaça as mãos sob o queixo:

--- Pois seus devaneios me deixaram falando sozinha como uma boba.

Getúlio cora.

Marlene ri gostosamente.

--- Oras, meu caro Getúlio, não fique assim. Já falei que tenho sede. Vamos tomar um drink e tudo ficará bem, ok?

--- Claro, pois muito bem, Marlene, vamos brindar – recompõe-se Getúlio.

Volta-se para o garçon:

--- Champanhe por favor.

Marlene puxa o braço do garçon.

--- Luiz, esqueça a champanhe. Vamos pedir outra coisa.

E para Getúlio:

--- Não seja como aquele seu amigo que te afetou tanto assim. O senhor é do Rio Grande do Sul]. Peça uma bebida de lá para o senhor matar a saudades e ao mesmo tempo apresentar-me à sua terra, dr. Getúlio.

Getúlio sorri, concorda. Pede duas Canhas, aguardente azul típica do litoral sul e muito apreciada – secretamente por Vargas.

--- E duplas, acrescenta Marlene.

Bebem. A bebida arde na garganta, mas esquenta o corpo inteiro como veludo líquido, confortando e relaxando-os.

Getúlio pede para ela apresentar-se de novo. Quer ter ela na memória, sua voz, música e movimentos, não um homem que pensara ser amigo, mas revelava-se inconveniente, fanfarrão e invejoso.

Assis Chateaubriand | Academia Brasileira de Letras 

ASSIS CHATEAUBRIAND

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