UMA NOITE NA URCA COM GETÚLIO–III–A BOA FILHA

 

 

                   ALZIRA VARGAS

 

Enquanto isso, no Palácio do Guanabara, Alzirinha voltou-se para o pai, lágrimas secando no rosto, a suave maquiagem com que se enfeitara de manhã arruinada.

A sombra que passara na pálpebra derretera com a acidez das lágrimas e agora ela dirigia-se ao pai, com o rosto manchado, a expressão de uma máscara sofrida em seus olhos borrados:

--- Dê-me a arma, Patrão. Isso não vai levar a lugar algum.

Getúlio não ouve. Está novamente revivendo sua dor de um ano atrás e o mundo que está a sua volta, pouco ou nada lhe diz. O poder, antes tão sedutor, agora lhe parecida repulsivo diante da inexorabilidade da morte. Pois qual Força, natural ou não, pode detê-la? Nem o Deus de sua mulher e de sua filha conseguem tal fato, quanto mais ele, um reles e insignificante mortal.

GE-TÚ-LIO

GE-TÚ-LIO

GE-TÚ-LIO

E que significa essa multidão que sempre, sempre lhe foi fiel, e que tanto ele adorava e paparicava, por vezes honesto. Outras hipocritamente, porque não reconhecer?

A inerente necessidade da hipocrisia na política e que tanto Vargas dominava lhe seria extremamente útil agora. Bastava forçar o sorriso, um gesto de mão.

Estimular a multidão até seu esgotamento. Acalma-la. Manda-la aos seus lares com o sabor da esperança na boca, mesmo sem nada ter prometido. Esse era o caminho da diplomacia hipócrita, maquiavelicamente inteligente da qual era mestre.

Mas sua vontade era misturar-se com a multidão e simplesmente desaparecer. Completamente. Sem deixar vestígios. “Sumir em direção ao nada, ah, que alívio...”

Os gritos o sufocavam, enfraqueciam-no cada vez mais.

GE-TÚ-LIO

GE-TÚ-LIO

GE-TÚ-LIO

Seu espírito clamava por silêncio.

Aquilo tornou-se insuportável para Vargas:

--- Faça com que se calem, por favor, minha filha.

--- Sim, Patrão. Mas antes, dê-me a arma.

Só então Vargas ouviu a filha.

Pressionou a coxa contra a arma.

--- Não me retire a única possibilidade de paz que me restou, minha filha.

--- Paz, Patrão. O poder não traz paz, é conflito o tempo todo. O que o patrão precisa é esquecer-se dele. Esquecer das dores. Encontrar um pouco de prazer para encontrar essa tal paz. Para voltar ao poder inteiro, meu pai. Assim, seremos logo comida para todos os abutres que nos cercam.

GE-TÚ-LIO

GE-TÚ-LIO

GE-TÚ-LIO

Getúlio suspirou e arcou os ombros, como se o que a filha lhe tivesse dito contivesse o peso de uma alta montanha.

O poder o esmagava tanto quanto a instabilidade da época. Havia a guerra mundial, as tensões internas de seus ministérios, a constituinte que ameaçava a continuidade e hegemonia de um governo que, desde, 1937 trabalhara para construir um Brasil unitário.

E pela primeira vez, com a dor estalando no peito, ter ou não poder não significava mais nada para Getúlio.

--- Pois que nos comam. Seremos todos comida para vermes, de uma maneira ou de outra, não é mesmo. Ou onde você acha que está seu irmão Alzira. Ou mesmo seu vô. Os dois estão juntos.

Dá um murro na mesa.

--- Na barriga dos vermes!

--- Não quero discutir meu pai, mas...

--- Com licença, sinto muito interromper, mas a noite é uma criança e um cassino nos espera, meu presidente.

Era Gilberto de Andrade que havia chegado com a cavalaria.

Fachada do Palácio Guanabara, sede do governo fluminense 

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