ARGUMENTO–A BACANAL DE COBERVILLE

 

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1955. Aymée de Soto Mayor de Heréen olhava a fumaça negra que subia das ruínas daquele que fora um gracioso castelo nos arredores de Paris.

Uma mulher chorava em seus braços. Bradava lágrimas com gritos terríveis que ela não ouvia.

Aymeé estava concentrada, imersa na turbulência de imagens que lhe acorriam a mente desde aquela fatídica festa dois anos atrás.

Genevieve Fath, víuva do recém falecido Jaques Fath, um dos organizadores do evento de 1952 havia escapado da morte certa pulando da janela do castelo de Coberville quando o incêndio que o destruiu começou.

Aninhava-se nos braços de Aymée, envolta em peles de foca, mas totalmente absorvida pelos caminhos onde sua vaidosa leviandade quase levaram o país.

Aymée premeditadamente quase havia provocado um escândalo naquele lugar, em 1952, que por pouco não marcou e manchou para sempre a honra de Getúlio Vargas.

Aymeé, então, desejava ardentemente até um impeachment por falta de decoro executivo ou o que o valhesse, mas qual, todos os seus planos desmancharam-se, arruinaram-se, exatamente como um castelo em chamas.

Ela sentia o calor do incêndio queimando sua pele.

Não ouvia Genevieve chorando em alto e bom som em seus braços.

Não via a fumaça negra do castelo de Coberville, mas as das ruínas de seus próprios castelos: sonhos de tola vingança.

Pois na época ressentia-se de Getúlio. Ele a abandonara em Paris em 1938, deixando-a plantada como uma estátua na cidade e simplesmente desaparecendo e nunca mais se comunicando.

Não fosse o talento de Aymeé como modelo, o uso inteligente de seus dotes físicos e sociais, ela jamais sobreviveria.

Mas tivera que casar-se de novo.

E novamente ter um amante à sua porta.

Desta vez um inimigo de Vargas.

Assis Chateaubriand.

A amante de meu inimigo é minha pior inimiga, devia-se dizer o ditado.

Ainda mais se for sua ex.

E com sonhos de ser a primeira dama, os sonhos que ruíram com o incêndio, tal Coberville, que Vargas provocou com sua ausência e silêncio.

O amor bateu asas janela do coração de Aymeé, deu lugar ao ódio.

E Chateubriand odiava profundamente Vargas, quase como odiava Matarazzo.

Porém, não hesitava em adulá-lo, caso o poder de Vargas como presidente do Brasil lhe fosse útil.

Sempre fora assim, desde o Estado Novo até o fatídico tiro no peito.

E, ela devia ter percebido, os atores de seu escândalo morriam um a um.

Primeiro Vargas, com o inesperado, trágico e terrível tiro no peito.

Depois Jacques Fath, em seus deslumbrantes quarenta anos, dá adeus a vida com Leucemia circulando nas veias.

E agora Coberville.

E Geanevieve, a bela víuva Fath, chorando em seus braços.

Bradando em alto e bom som que quer morrer.

--- Je volle morrir...

Quem sobrevivera aquela festa, dois anos atrás, ou melhor, dizia sua paranoia, quem sobreviveu à seu plano, querida Aymeé, a não ser você e Chateuabriand...

Isso não é estranho?

Um arrepio subiu de sua nuca, quando tudo entrou em foco outra vez e ela ouviu o berreiro de Genevieve em seus braços.

--- Em francês Pssss pequenina, durma, tudo vai ficar bem... Canta uma cantiga francesa de dormir.

De maneira estranha, a música afeta Genevieve que fecha os olhos e acomoda-se entre as peles que aqueciam o corpo esbelto apesar dos 42 anos de Aymeé.

Parece dormir.

--- pss pequenina. Durma está tudo bem...

Mas lá no fundo ela não tinha certeza. Negras nuvens de fumaça pairavam sobre elas como prenúncio de uma tragédia ou o anúncio de uma maldição cumprida.

Ela recorda.

Aymeé podia lembrar-se da alegria com que visitaram Genevieve e Jacques Fath pela primeira vez em Corbeville, num agradável café, num mais agradável ainda começo de primavera francesa, num março ensolarado de 1952. Havia ours d’ouvré deliciosos, risos e vinho.

Foi quando nasceu o plano. Ela pediu para Chateaubriand contar seu sonho.

--- Quero mostrar ao mundo o Brasil de verdade, um Brasil feito de mestiços autênticos, mulatos inzoneiros índios e negros, que somos todos nós, brasileiros. Não somos da cor branca com quem querem nos pintar.

Aymeé reforça o argumento com uma sugestão irresistível para Jacques e Genevieve Fath, ambos festeiros e dispostos a tudo por uma boa diversão.

--- E a melhor forma de fazer isso é um baile de carnaval, um baile à fantasia, onde todos se misturam e fica evidente a vasta experiência de cruzamento nos trópicos.

--- Um baile á fantasia inspirado no carnaval do rio de janeiro. Que ideia maravilhosa, mons amis – responde um entusiasmado Fath.

--- Poderíamos convidar todo o jet-set internacional, eles amariam uma festa assim, sorri mais que fala Genevieve.

--- E também contamos com o senhor para modelar uma coleção com nosso algodão para as fantasias de carnavel, messer Fath. – complementa Chateaubriand

--- E para presidir, podemos chamar a primeira dama. Soube que Darcy Vargas está na Europa. Acho que não resistiria a ser uma convidada de honra em nosso “pequeno” evento. O que acham... pergunta com irônica inocência Aymeé.

Para sua satisfação, todos concordam.

Aymeé sorri. Beberica o café à sua frente.

“Tolos. Engoliram tudo. Bem sei o quanto de permissividade e licenciosidade existe nestas festas e sei muito bem escapar de tais inoportunos inconvenientes. Mas saberá fazer o mesmo Darcy? Duvido. Com os Diários Associados de Chateaubriand envolvido, haverá fotos. Muitas fotos. E do jeito com que sei que anda a imprensa atacando Getúlio, uma foto será o suficiente para gerar um escândalo. E esta será minha vingança, mon cher Vargas... Atingir sua tão estimada honra familiar”.

--- Sim, diz Chateaubriand. Vamos começar os preparativos para a festa. Qual o lugar que o senhor sugere meciér Fath.

--- Oras, aqui. No castelo. Em corbeville. Vou transforma-lo num pequeno Brasil.

E nos 50 dias em que trabalhou para organizar o baile, Fath não fez segredos de suas intenções.

E ainda por cima proclamava com orgulho que a primeira dama brasileira, dona Darcy Vargas em pessoa presidiria seu evento em nome do presidente.

Uma das fontes da vasta teia de informantes do jornalista e amigo pessoal de Getúlio Vargas, Samuel Wainer acabou escutando os boatos e os repassou ao chefe.

Wainer, que, como Aymeé conhece bem este tipo de festa fareja a armadilha para a primeira dama e consequentemente para Vargas. Vai até ele. Avisa-o.

Vargas fica irritadíssimo quando sabe do teor do evento, de quem o organizou e trata de localizar sua mulher e filha, pois Alzira Vargas acompanhava Darcy na viagem para a Europa.

Consegue contata-las.

Darcy nega-se a cumprir as ordens do marido de não ir a festa.

Alzira diz que não deixará a mãe ir só no que pode ser uma armadilha. Quem sabe não consiga fazer com que escapem.

3/08/1952 - A Festa:

O que Aymeé previra acontece.

Descrição da festa.

Entrada triunfal de Aymeé numa liteira carregada por quatro poderosos africanos vestida como raia inca.

--- Mamâe, caímos numa armadilha – Diz Alzira.

Darcy Vargas é fotografada ao lado de Jacques Fath vestido de Fauno.

Carlos Lacerda, não perde tempo e critica duramente o que chamou de A Bacanal de Coberville. Atacou o pai dos pobres instigando alguém que tenha a coragem de questiona-lo de onde vieram os dólares e o câmbio necessário para torna-los viáveis para uso. A reação de Getúlio ao ler A Tribuna: franze o cenho, olha para Wainer. Pede para que ele acione seus contatos. Wainer faz jogadas quase sujas – Getúlio Decide que Alzira e Darcy permanecerão na Europa até as coisas esfriarem no Brasil.

Os contatos de Wainer são acionados e logo a voz do Estado de São Paulo se levanta acusando Chateubriand de preparar uma armadilha para Darcy Vargas.

Getúlio lê a reportagem.

Longa gargalhada de Getúlio.

Diálogo com Samuel Wainer

Lacerda recua das acusações sobre Getúllio. Ataca Chateaubriand.

Getúlio lê a reportagem. Longa gargalhada de Getúlio.

Diálogo com Samuel Wainer

Resposta atabalhoada de Chateubriand. Preconceituosa contra os paraíbas

Getúlio a recebe. Lê. Longa gargalhada de Getúlio.

--- Ele está acabado.

Aymeé, apesar de decepcionada com o fracasso do escândalo, está calma. Percebe que tem que usar seu plano B para virar o jogo. A revista Cruzeiro com tiragem de 370 mil exemplares é um instrumento mais do que suficiente para reverter a má imagem do amante.

Sugere uma série de reportagens sobre a festa de Coberville. Argumenta que com a tiragem do Cruzeiro, afogaria seus oponentes cuja tiragem pífia, não alcançara a totalidade da população brasileira. Não como a Cruzeiro poderia o fazer. A cruzeiro viraria o jogo. Transformaria o evento numa publicidade do algodão brasileiro usado para confeccionar os trajes de Jacques Fath e faria de Chateuabriand um herói.

Edições de cruzeiro.

Getúlio as lê com incontida satisfação.

--- Vejam só, o vilão virou o herói do algodão nacional. Você não sabe como fico feliz com isso, meu caro Samuel.

Longa gargalhada de Getúlio.

--- Mas Getúlio, você desapareceu de cena, ninguém mais noticia suas obras, seus feitos, os grandes gestos do governo. Só querem ler mais e mais sobre Coberville e Chateaubriand.

Getúlio corta um charuto, acende-o pisca um olho para Wainer.

--- Por isto mesmo. Um político incógnito na imprensa é um vencedor da mídia. E o seu prêmio é a paz. Deixe Chateaubriand levar os créditos. E não pense que fugi da luta. Os Vargas não perdoam, mas esquecem... E agora, meu amigo, vamos fazer um brinde. Ao fim dos escândalos. Ao esquecimento.

E ri, sua sonora gargalhada soando como os cristais que se chocam nos mais alegres brindes.

Mas Aymeé percebe estes alegres brindes culminando num tiro. Sangue. E o rosto de Vargas sem vida.

Depois, sua memória deriva para um leito no hospital. Um zoom in no rosto de Jacques Fath verde morrendo aos poucos. A fumaça negra de Coberville.

O aroma de um amargo passado queimado.

E Aymeé retorna de suas lembranças.

Vê-se cantando a cantiga de ninar para Genevieve Fath no automático.

Diz pela última vez:

--- psss, minha querida, tudo vai melhorar, tudo vai passar. Durma. Durma...

É quando percebe que falava não só para Genevieve, mas para ela mesma, uma cantiga para ninar sua culpa, sua íntima e incerta paranoia, mas que parecia uma música fúnebre a enterrar algo que ela perdera com sua leviana tentativa de vingança. Algo indefinível lhe fora arrancado do espírito. Sentia-se pesada. Um peso eterno.

Pois o peso no espírito era a exata medida de sua perda, talvez uma espécie de inocência outonal, uma flor que resistira ao tempo e que a leviandade com que tramara sua vingança em Coberville acabara por murchar.

Como um sonho que se perde na memória.

Ayméé sentia que, para ela, haveria apenas o resto da vida, não a vida plena.

Um fiapo de viver, confortável como um aquário dourado, onde um dia, inexoravelmente iria se afogar, enquanto os dias iam apagando-se um a um em direção ao lugar onde a escuridão não é a noite, mas algo muito maior, e que Aymée não ousava pronunciar.

                                      FIM

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