A ALEGRIA EM CATIVEIRO FINAL

 


                                   


E realmente o foi, pois, sem que pudesse compreender, só recebeu, mais uma vez, ausências e fantasmas. Seu peito encheu-se de mágoas e vazios.

Não mais arrumava cadeiras num salão vazio.

Caia mais ainda no buraco negro das perguntas sem resposta. E seu peito encheu-se de mágoas.

Para combatê-las, decidiu comprar um carro, passear por aí, outros ares, outras pessoas, outros “queridos”

Mas, por mais que andasse por aí, sentia-se antes hostilizado pelas ruas do que reconfortado.

Havia nesses passeios dois alívios. O sair de casa e o retorno apressado.

Fracassara novamente.

E foi divagando na mágoa, na decepção e nestes estranhos alívios que, ao abastecer, sequer viu o carro ao seu lado.

Houve uma batida.

Fora o culpado.

Viu-se cercado.

Não apenas pelo motorista do carro atingido, mas por todos os frentistas do posto.

Viu-se xingado, pressionado e constrangido em mais uma humilhação.

Sequer respeitaram sua deficiência.

E como saíra apenas para abastecer no posto próximo de sua casa, não havia levado nem carteira nem documento do carro. Não havia escolha. Tinha que pagar pelo seu erro involuntário.

Pensou em negociar, forneceu a carteira funcional da entidade estatal para a qual trabalhara como garantia. No momento não tinha como pagar o conserto.

Porém, pressionado tanto por frentistas, bem como o próprio motorista, foi forçado a pagar o estrago de pronto, na oficina preferida do condutor vitimado.

A mais cara da cidade.

O concerto foi mais caro do que pensava.

A solução foi fazer um PIX no cartão de crédito.

O mesmo cartão onde estavam as prestações de sua delirante produtora.

Mês seguinte, não conseguiu honrar seus compromissos financeiros e a dívida assombrou-o com seus juros assustadores.

Sentiu-se humilhado a ponto de querer esquecer a fatídica batida. Apagou o comprovante do pix forçado, não contou nada a ninguém de sua família.

Para que? Pensou. Para ser mais humilhado e desprezado? Era o que menos precisava.

Para mitigar as dívidas que, cresciam cada vez mais, foi forçado a desfazer-se de sua sonhada e delirante produtora, equipamento por equipamento, a preços ínfimos.

E com cada item vendido a preço de banana, pedaços cada vez maiores de sua dignidade.

O total arrecadado sequer dava para iniciar uma negociação com o banco, que exigia uma entrada maior do que seu salário a juros exorbitantes.

Morria assim, o maior de seus sonhos, seu delírio, seu projeto de vida.

Torturado ao extremo, tanto pela dívida, quanto pela morte de parte de si mesmo, foi obrigado a apelar para a família.

Que exigiu o comprovante do fatídico pix que fora apagado.

Não acreditaram nele.

Julgaram-no incapaz de administrar suas próprias finanças.

Sem a prova fatal do começo de sua morte, foi obrigado a enfrentar um processo de interdição.

Perdeu.

Foi interditado.

Sequer conseguiu fracassar sozinho.

Paradoxalmente, com isso, foi aceito com mais carinho nas rodas familiares. Apesar dessa aceitação, lá, seu sangue reunido, sentia-se mais infeliz e solitário do que nunca.

Só lhe restava abrir um sorriso amarelo às piadas mornas e sem alegria que se repetiam reunião à reunião, a “liturgia” de sua família

Dessa vez, sua longa queda, a gravidade pesada de seu buraco negro, finalmente levou-o ao fundo do poço.

Percebera tarde demais.

Numa tarde de domingo, não foi à reunião familiar. Dedicou-se a preparar um único quitute.

Sentia-se cansado demais para a solidão que o possuía entre os seus.

Sentiu o aroma do pãozinho assando.

Era bom. Cercou-se de nostalgias que nunca existiram.

Preparado o pãozinho, embrulhou-o em papel manteiga com esmero.

A noite começava a cair.

Ele não queria enfrentá-la.

Abriu a gaveta, dela tirou seus soníferos.

Tomou o dobro da dose receitada.

Queria dormir. Nada mais importava, a não ser dormir.

Adormeceu.

O quitute, cheiroso, repousava encima da mesa.







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