A ALEGRIA EM CATIVEIRO II
Não havia nada para contar de seu trabalho sem graça e a arte era um assunto desconhecido, ignorado, ou até desprezado pelos familiares. Nenhum deles incentivava-o a manter o “sacerdócio”, pelo contrário, sofria constantes críticas devido ao compromisso “litúrgico” diário.
As pessoas que compartilhavam seu sangue não o compreendiam.
Mas este mesmo sangue afirmava que, com “seus queridos”, encontrara sua tribo.
E o estimulavam a aproveitar a solidão dos finais de semana para os encontrar: “Quem sabe, assim, você faz de sua literatura um passatempo e não uma obrigação”
Ele suspirava mas tentou aproveitar a brecha e assim nasceu a ideia dos cafés artísticos.
E, mesmos com as negativas de última hora, as justificativas dos ausentes não eram desculpas, mas sim, a mais pura e cristalina expressão da verdade.
Mesmo ao ouvir uma negativa num áudio, onde, ao fundo da voz lamentando a impossibilidade do comparecimento percebeu música, conversas e ruídos que só em festas aconteciam. Sua confiança nos “queridos” manteve-se firme.
Julgou que os cafés planejados não eram perfeitos como pensava. Mas o que faltava? Concluiu que a música e o álcool deviam estar presentes. Sem dúvidas, era o que faltava.
Ao menu de seus encontros, acrescentou uma eclética playlist para agradar a gregos e troianos.
Não bebia, mas somou cerveja à mistura, comprou mini coxinhas, quibes e outros mini salgadinhos de festa e temperou a receita com espumante Brutt após diversas degustações que, mesmo em ínfimas doses, o deixaram tonto, o cérebro inútil e com a inevitável ressaca.
Porém, conseguiu o acompanhamento perfeito.
A receita estava pronta.
Confiante, prosseguiu com os convites. Nada, ninguém e o vazio. Somente “lamento muito” e justificativas de última hora.
Que não eram mais a pura e cristalina expressão da verdade, mas esfarrapadas desculpas.
Veio a prova dos nove. Num dos cafés fracassados, abriu as redes sociais. Seus “queridos” postavam seus sorrisos entre outros amigos, copos transbordantes, piscinas, parques, bosques e matas entre abraços de urso.
“Mas porque ninguém me convidou”, pensou.
Sentou-se só à mesa caprichosamente produzida, sentindo o aroma dos quitutes e bebericando o café em tristes goles acompanhados por excessivos cigarros. Refletiu, pensou, sentiu, racionalizou, raciocinou. Até que os quitutes esfriaram e o aroma pungente das cinzas transbordando no cinzeiro tornaram-se sua companhia.
Nessa noite, não dormiu.
Chorou.
Não conseguiu entender os motivos dos “queridos” fantasmas que o envolveram em seus sonhos infelizes.
Era considerado um cara educado, bacana, muito legal, com o sorriso aberto e riso fácil. “Você é um gentleman”, era o que mais ouvia de seus “queridos”.
Restou a cruel dúvida: “Como sendo eu o que sou, ou ao menos o sujeito muito agradável que dizem que sou, posso ser ignorado dessa maneira?”
Quem gostou da situação foi a família. Todo o seu cuidadoso menu por ela passou a ser consumido com alegria inversamente proporcional à sua tristeza.
Caíra no abismo das perguntas sem resposta.
“Cheguei ao fundo do poço” - pensou.
Não percebeu que a pesadíssima gravidade do buraco negro de sua queda tornou-se constante e a queda, extática, mera ilusão dessa inércia.
O fundo do poço ainda estava longe.
Depois dessa fatídica descoberta, não escreveu mais nada.
Não havia sentido escrever para ausências.
Mas, por puro hábito, continuou a preparar quitutes, porém, dessa vez, sem convites. Como se o cheiro de seu capricho invocasse alguma presença, além dos costumeiros fantasmas.
A vida tornou-se um salão vazio onde continuava a arrumar cadeiras.
E seu hábito de invocar fantasmas ausentes, tornou-se uma depressão crônica.
E não conseguiu mais trabalhar.
As inúmeras licenças por depressão, foram fatais. Foi aposentado. Não por incapacidade física, mas psicológica.
Isso o abalou. Considerou uma aposentadoria de sua própria lucidez. Mas não conseguiu parar de fazer os quitutes. Dessa vez, numa tentativa desesperada de resgatar seu eu artístico.
Mas, aos poucos, sua esperança foi esmagada pelo próprio sabor amargo dos cafés fantasmas e pelo cheiro fantasma das ausências.
E a arte, antes sua alegria e motivo de viver, tornou-se triste e quase suicida.
Seu peito, antes sorridente, tornou-se cheio de mágoas incompreensíveis.
Para combatê-las, gastava mais do que podia, investiu na infraestrutura de uma produtora de streaming com oficinas onlines, palestras virtuais e rodas de conversa artísticas.
O fez menos para si mesmo, mais para, numa última e desesperada tentativa de rodear-se de seus “queridos” e tentar promover, não seus escritos cuja fonte secara, mas sim, a arte de outros artistas que não tinham voz.
Queria formar uma frente conjunta e independente para que todos pudessem evoluir e alcançar a plenitude de seus talentos.
“Delírio” foi como a família categorizou sua inciativa.



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