A ALEGRIA EM CATIVEIRO I

 





Afeto.

Todo mundo quer, mas alguém realmente o tem ou pratica?

Onde reside o afeto? Na presença física ou nos emojis das reações positivas ou mesmo negativas nas redes sociais? Em ambos? Naquele comentário virtual ou físico que incentiva ou critica?

As conversas nos aplicativos de mensagens são meras informações da vida de um ou de outro, uma espécie de private joke, uma inofensiva fofoquinha de si mesmo? Um ato de auto-publicidade, então, ou uma carinhosa cumplicidade?

Um bom dia por educação ou uma demonstração que a ausência de quem troca mensagens é sentida?

Saudades, seriam então, essas palavras de amizade?

No abraço e no beijo que o segue quando um amigo encontra o outro?

Ou mesmo no silêncio da ausência física e das palavras nunca ditas?

Sensível sinceridade ou bemintencionada hipocrisia?

Ele não sabia. Para não viver no precipício das perguntas sem resposta, acreditava que afeto era hábito.

O bom dia que enviava a todos os seus “queridos” nas teleguias do celular era, mais do que um estou aqui, olhe para mim, responda-me, um desejo real de alegria para as pessoas que sentia carinho.

Desejava, de fato, o bem-estar daqueles que falta lhe faziam. E cria piamente que a recíproca era verdadeira.

Nunca fora popular nas redes sociais, restava a esperança do encontro físico e os aplicativos de mensagens, eram uma ponte entre a virtualidade de uma presença e a realidade do encontro em carne e osso.

Cadeirante, não podia ir ao encontro dos seus “queridos”. Não tinha carro. Tentara o Uber para deslocar-se , porém, nenhum motorista parava ao vê-lo só e se arriscando no asfalto da rua empoleirado em sua cadeira de rodas. – os carros estacionados aos montes nas guias, conferira, impediam qualquer eventual condutor de o ver.

Um motorista parou exclusivamente para dizer-lhe que daria muito trabalho encaixar a cadeira de rodas no banco de trás de seu carro que era onde deviam ir os passageiros e que não era pago para isso.

Não consigo imaginar sua decepção e tristeza ao ouvir essas palavras.

Passou a convidá-los, então, para cafés em sua casa. De imediato recebia um sim. Alegrava-se. Esmerava-se para servi-los com carinho e intimidade.

Aprendeu a fazer quitutes: pães de queijo, tortinhas de liquidificador, brigadeiros. Simples, mas como principal ingrediente o capricho que os amigos mereciam. Aprendeu a preparar sucos e drinques sem álcool. Maracujá com gengibre e manjericão temperado com limão siciliano e finalizado com club soda era o seu predileto. Chás de cidreira, hortelã, camomila, e outras ervas, para quem, porventura, dispensasse café e sucos também estavam presentes no cardápio.

Buscava a perfeição.

Os “queridos” a mereciam.

Mas os “queridos” não vinham.

Ele, café posto em mesa caprichada, ligava buscando confirmação.

Os “queridos” tinham que cuidar da mãe ou algum outro parente próximo adoentado, ou trabalhar em casa, ou, diziam eles, as tardes de fim de semana eram dedicadas aos seus trabalhos artísticos e, infelizmente, coincidiam com o caprichado café que ele lhes preparava.

Ele entendia. Também era artista. Acordava todo dia às 5:00 para exercer o que considerava seu sacerdócio. Escrever. Só depois desse sagrado compromisso, batia o ponto no trabalho. Feito em casa sob regime de homeoffice. Era funcionário público e ganhava bem.

Dedicava muito de seu salário ao incentivo de seus “queridos”. Comprava quadros, fotos e livros (muitos dos quais, escrevera a introdução, o prefácio e até posfácio). Odiava seu trabalho, a burocracia e a falta de raciocínio e opinião própria que seus afazeres exigiam. Amava a arte.

Considerava-se sábio. Não por si próprio, nem pela qualidade dos textos que escrevia, feitos às pressas, com erros de português e na ânsia de conseguir finalizar sua liturgia diária antes do seu odioso compromisso altamente rentável, mas sim, por julgar-se cercado de pessoas mais inteligentes e talentosas do que ele.

Era necessário compreensão. O que tinha de sobra. E como cadeirante, aprendera a ter paciência, pois a falta de autonomia motora o forçou a depender dos outros. Mais especificamente, da boa vontade e no tempo livre de quem, porventura, viesse a ajudá-lo.

Os familiares aproveitavam o fim de semana para complementar os cuidados da mãe idosa com o carinho filial e não participavam nem incentivavam de suas ambições artísticas.

Ele não ia mais nessas reuniões: falava com a materna diariamente em longos e carinhosos encontros cafés da manhã virtuais. Com isso ela não só amava os “meetings”, mas sentia-se incluída no mundo digital. Não cansava de dizer a ele como era grata por isso. Ambos se satisfaziam e sua presença física tornou-se desnecessária.
Além disso raramente era ouvido nestas rodas de conversa familiares. 



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