O VENTO SABE A RESPOSTA - PARTE FINAL - TORNADO
Arte: Tomas Jedrurszeck |
Começou uma Ave Maria:
--- Ave Maria, cheia de graça... O senhor... O senhor...
Travou, não se lembrava da oração.
O vento o castigou, a porta batendo com uma velocidade
estonteante.
Uh-Pá-Pá-Pá-Pá.
Uh-Pá-Pá-Pá-Pá.
“A gargalhada, de novo”, pensou quase paralisado de horror.
Esforçou-se para sair do torpor macabro que enfrentava. Tentou continuar a
oração.
--- Convosco... Bendita, Bendita, Bendita – inútil, não
conseguia se lembrar.
Engoliu em seco quando, além da porta batendo como se vida nela
houvesse, entreviu a privada do banheiro. Dela escorria um líquido espesso e
rubro e sentiu o cheiro de sangue que o vento lhe trazia.
Pá-Pá-Hu-Pá-Pá. O vento gargalhava de suas vãs tentativas de
defesa.
A chama da vela passou de amarela para azul tremulando com o
ritmo da risada, grave, constante, e terrível do vento.
Não conseguia desviar o olhar do azul da sobrenatural chama da
vela. Os tons variavam do azul profundo do mar, ao pálido azul de uma aurora
sem sol. Só voltou a si, quando sentiu um líquido quente na mão que conduzia a
santinha.
Sangue escorria dos olhos da nossa senhora.
Cambaleou para trás, tropeçou no bujão de gás. Foi ao chão. Na
queda chutou a mangueira e a chave do gás. A santa espatifou-se. Estava
indefeso.
SHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHHH
O silvo do gás que escapava foi tudo o que o vento precisou.
Soprou seu uivo rumo a vela e conduziu a chama sobrenatural ao bujão silvante.
Uma explosão surda de luz e chamas azuis alcançou o aterrorizado
homem caído no chão.
Suas vestes pegaram fogo, as chamas movendo-se como por vontade
própria no ritmo do uivo terrível, Uh-Pá-Pá-Pá.
Primeiro seus pelos incendiaram-se, depois os cabelos, logo após
as chamas penetraram nos olhos, estourando-os.
A pele começou a borbulhar, derretia-se revelava ossos, ele era
uma tocha azul correndo desesperado pela casa e levando o fogo para os móveis
de madeira barata, os tecidos roídos da cortina, tudo ao seu redor tornara-se o
alimento da fome insaciável e terrível do azul flamejante.
Huuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu
Enquanto a pegava fogo junto com a casa, a ave-maria surgiu em
sua mente, mas já era tarde demais.
Seus lábios haviam sido consumidos pelas chamas, a caveira que
deles sobrara permaneceu abrindo e fechando, tiritando os dentes em fogo, sem
que uma palavra dela fosse proferida.
Morreu sozinho e em agonia. Tornou-se ele mesmo, em sua morte,
um dos mistérios que tanto amava decifrar em vida.
Se no pós-morte foi para o paraíso, para o inferno ou para os
casos estranhos e inexplicáveis que permeiam a existência humana, pergunte ao
vento.
Comentários
Postar um comentário
Mande fumo pro Curupira