A QUEM IMPORTAR POSSA

Não me importa falar sobre a angústia de ser quem sou. Alguém que olha o espelho como quem vê os sonhos frustrados, a desesperança, amargura e os efeitos implacáveis do tempo.
Desejo intenso ter um retrato como o de Dorian Grey.
Mas meu retrato interior seria insosso. Sem sal, nem açucar. Morno como comida aquecida no microondas. Angustiado por falta de tragédia e comédia, prazeres básicos que alicerçam o cotidiano de todo o ser humano.
 Então me cerco de outras histórias. Pequenas alegrias e tragédias peculiares que me rodeiam para contrabalancear minha alma cinzenta. Rascunhos de obras e conversas que poderiam existir, caso nelas acreditasse:
A dona do bar cansada que me conta como a vizinha negligencia suas crianças, como gasta tudo o que é dinheiro que lhe cai nas mãos em birita, que dá pra tudo o que é piroca que lhe dê o que beber e seiláoquemais. Suas duas crianças - lindas e doces e carentes - estão sujas e piolhentas.  
 A dona do bar vai além, conta que ela, do nada armou o maio barraco com ela, gritando em alto em bom som, um monte de merda do tipo: vagabunda, viciada, piranha, etc. Seus pais e seus filhos ouviram. Deu um trabalhão danado reverter o estrago. Isto porque a dona do bar a ajudava, dava comida, abrigava as crianças, etc. Mas seu coração é grande, preocupa-se porque a tal vizinha invadiu uma casa. Me pergunta se isto pode dar encrenca.
É claro que pode. Ela violou o único mandamento não escrito e o que mais interessa. A Santíssima propriedade privada. Uma denúncia e pronto. Top-top-top.
Ela retruca, diz que não pode ser por causa dos filhos.
Eu respondo que ela não tem trabalho é socialmente imoral, deixa os filhos à mercê da rua, que o marido está preso e que o mínimo que pode acontecer é ela perder os filhos. E que ela reze pro marido, que está preso, não saber, senão….
Ela fica quieta e me oferece um cigarro. Fumamos.
Minha mulher olha longamente as crianças na esquina. Uma menina da vizinhança cata os piolhos da cabeleira longa e dourada do filho mais velho da vizinha. O mais novo está roto, jogado, sentado ao meio fio, como se ensaiasse um futuro mendicante.
--- Se eu pudesse adotaria estas crianças.
Já fui como ela. Sofri pelos outros. Mas agora suporto a dor da existência. 
Estoicismo puro e simples. Matei o que havia de sensível em mim. Suicídio espiritual. O mundo é cinza, como os gatos noturnos e a fuligem que cobre a cidade, como as cinzas de um corpo cremado. Como a alma penada que em mim habita. 
É aqui que admiro estas mulheres, o colorido que sabem dar às suas dores, a maquiagem com que mascaram sua preocupação e a consciência de que riem de si mesmas e de suas próprias desgraças. E sei que gosto muito delas.
Mas não sofro a sua dor. Sofro, racionalmente. Filtro o sofrimento das ruas com a mais implacável das lógicas. Não a de minha mulher, ou a da dona do bar, a lógica pura altruísta e brilhante das emoções, as sim a lógica fria de uma lâmina.
Então é matematicamente exato sentir asco pela vizinha. Mas neste algoritmo surge uma variável que é uma agradável surpresa. No fundo amargo de minha alma, pulsa uma compaixão inaudita por estas crianças. De repente elas parecem brilhar. Ignoram a rua e seus perigos dentro do escudo de sua pureza. Doriam Gray as avessas. E nada me parece mais lógico do que adotá-las, se pudesse.
Mas todo este quadro permanece anônimo, esmagado numa forçada simbiose com o concreto, o asfalto, as embalagens de doces e sorvetes lambidas por cães e gatos. A dona do bar está em seu habitat porque foi o resultado não planejado de lutas, sangue e lágrimas. Está cansada e, apesar dos esforços para ignorar o fato, sabe o que os dia-a-dia lhe destina. Suporta, energias esgotadas. Seu mundo é cinza. Assim como creio que outra realidade pareceria cinza à estas crianças, caso a conhecessem. Nenhum pássaro que nasce engaiolado sobrevive à liberdade e vice e versa. Então, de uma maneira ou de outra, estamos no mesmo barco. Nesta calmaria estagnada, sem ventos, sem ondas, sem nuances de cores, onde qualquer som é um disfarce do impotente grito de agonia da própria alma.
Ao menos neste intervalo de um cigarro, pois a bituca queima meus dedos.
Jogo o toco de fumo longe. Minha mulher e a dona do bar riem. 
O menino mais velho vem pedir um abraço. 
--- Vai pegar um doce lá no bar, menino - diz a dona do bar.
Ele olha desapontado e triste, grandes olhos de piscina, dá vontade de mergulhar.
Eles tremem como olhos de personagem de desenho japonês.
Mas resiste, não chora.
Mesmo criança, é pura lógica. Doce não é carinho.
A dona do bar acende outro cigarro. Minha mulher arma-se de óculos escuros.
Gostaria de terminar dizendo que levantei-me peguei sua mão e levei-o ao bar, onde comprei o maior doce que encontrei e lhe beijei os olhos.
Ou então que todos nos abraçamos e assim ficamos até o anoitecer.
Ou mesmo que tomamos um porre fenomenal enquanto brincávamos de passa anel na calçada.
Ou até que o marido preso foi solto, e a coisa virou um policial passional underground.
Ou que a própria vizinha apareceu e esta história terminou como uma briga no mercado de peixe que é o Facebook
Mas nada disto aconteceu.
Porque todos viveram cinzas para sempre.
Mas quem se importa?

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