O CORTADOR DE SAPATOS I
Ele era calçadista. Cortador de sapatos. Orfão, fazia questão de ter família grande. Tinha 40 anos. Sua mulher, 10 anos mais jovem, cuidava de dois adolescentes, duas crianças e mais um bebê que estava a caminho.
Ela trabalhara na mesma fábrica que ele, conheceram-se lá.
Ela sempre odiara trabalhar com sapatos.
Mas, naquela pacata cidade, fazer calçados era tudo.
Não havia outras indústrias e a cidadezinha era famosa por seus sapatos.
Então ela prefira a maternidade em tempo integral.
Ele gostava.
Ao contrário dele teriam a mãe por perto.
Porque para manter a família e com a desvalorização dos calçados da cidade, viu-se cada vez mais fazendo hora extra.
Fazia-as em casa, mas para os filhos terem a afeição que nunca teve, cortava o couro noite adentro, varando madrugadas e trabalhando no dia seguinte.
Estava cansado. Tudo o que desejava era dormir.
Uma noite não resistiu. Dormiu encima de sua bancada caseira.
O sono foi tão fundo, o sonho tão intenso, que não acordou nem mesmo com suas mãos cortando involuntariamente o couro negro e chc de um futuro scarpin.
Quando acordou, lembrou-se do sonho.
Sonhara com a primeira vez que transara.
“Um sonho e tanto!” pensou consigo mesmo com um sorriso.
Levantou-se da bancada espreguiçou-se.
Acordara bem antes do café, quase alvorada.
Decidiu continuar o trabalho.
Foi quando viu o couro que cortara involuntariamente durante o sono.
Seu sonho estava lá.
Dois amantes emaranhando-se numa posição erótica.
Apavorou com a imagem excitante que criara. Se a mulher vissse aquilo, não teria como explicar.
Jogou a imagem no lixo, envolta nos outros restos do couro.
Doeu.
Enfiou as mãos no lixo e desdobrou as pressas o couro e o enfiou no bolso traseiro da calça.
O sol raiava.
A mulher acordava as crianças.
Um aroma de café vinha da cozinha.
Foi tomar um banho pensando naquilo.
Não era sonâmbulo apenas estava com o sono atrasado. O sexo também.
Mas isso podia compreender.
Mas não conseguia perceber como pudera fazer aquilo.
Não se lembrava so sonho, mas a posição era igual à sua primeira vez.
Enrolou-se na toalha ainda ensaboado e foi atrás da calça onde colocara o couro erótico.
Vestiu-a.
--- Vai de calça suja trabalhar, meu bem?
Sem jeito deu um beijo na testa da mulher. Depois outro rápido na boca.
Deu de ombros com um sorriso:
--- Meu trabalho é sujo.
A mulher sorriu e lhe deu outro beijo nos lábios.
Ele saiu correndo de casa.
Chegou na fábrica adiantado.
Tomou seu lugar.
Estendeu na bancada a imagem erótica.
Contemplou-a por um longo tempo.
Viu-se jovem, orfanato cheio.
Depois tudo se passava como um dia só.
Até a adoção por um casal que não queria filhos, mas sim, um escravo doméstico.
Fugiu após 3 meses de cativeiro.
Tinha 10 anos e estava perdido na madrugada.
Um senhor que saía de sua casa para jogar um saco grande de restos de couro o viu na rua.
Foi sua sorte.



Comentários
Postar um comentário
Mande fumo pro Curupira