SUA CONTA SENHOR


          


Seu nome era Lucas e enfrentava um problema no check-out do hotel decadente e cheio de rachaduras onde a família se hospedara.
Havia aquela impressora que não parava de vomitar fotos de suas memorias. Sua velocidade era estonteante. As imagens eram vívidas, brilhavam em cores com muito mais nitidez do que ele mesmo podia se lembrar.
E o host do hotel sorria de orelha a orelha, todos os dentes escancarados.
“Mas que porra é essa” era tudo o que podia pensar.
As fotos saíam da impressora:
Vupvupvup.
Fotos em movimento:
Uma namorada das fotos parecia lhe acenar, uma praia, ondas estalavam enquanto ele as furava.
--- Sua conta senhor.
Até o check-out do hotel, tudo estava tranquilo, na maior normalidade. Então aquilo. Essas foto-memórias malucas que não lhe davam trégua.
Um carro num acidente. Capota, ele dentro, as mãos firmes segurando embaixo do banco para não ser arremessado para fora.
--- Sua conta senhor.
Uma buzina.
O carro da família saiu do estacionamento. Os pais no banco de trás. A irmã, ao volante buzinava. Gritou:
--- Vem, Lulu. Quem dirige na estrada é você.
Típico da irmã. Numa situação absurda como aquela ir o chamando justo pelo apelido que odiava.
Súbito não havia mais fotos saindo da impressora. Via apenas um resumo dos gastos do hotel, parado no fim da bandeja da impressora.
--- Sua conta, senhor.
O host sorria. Os dentes eram pontudos. A impressora voltou a ganhar vida.
Vupvupvup
A imagem do carro numa das fotos.
E a voz da irmã sussurrante em seus ouvidos:
--- Lulu, vem. Vem... vem...
Olhou para trás. Lá estava ela, sua irmã. Bem ao seu lado, a perna roçando na dele.
A sua boca sem dentes, apenas um denso negro. Estendia para ele seus braços pálidos.
Olhou para o estacionamento.
Não havia mais carro.
--- Vêm...
--- Sua conta, senhor,
O host bafejava um hálito sulfúrico na sua cara.
Vupvupvupvup
--- Algum problema por aqui, posso ajudar?
Era o gerente do hotel, em seu terno azul, o rosto com um sorriso ameno. “Alguém lúcido por aqui” – Lucas chegou a pensar.
--- A sua conta, senhor.
--- Vem... dizia a voz sussurrante e lânguida da irmã.
Os olhos do gerentes tornaram-se vazios, duas cavidades oculares ocas.
Não mais sorria.
--- Ele não é daqueles que pagam rápido, chefe – disse o host para o gerente, o sorriso de jacaré totalmente aberto, ávido e faminto.
--- Ora, que ótima notícia – os olhos vazios encararam Lucas e finalmente sorriu, apenas quatro dentes pontudos e salivantes.
--- Então não tenho escolha, não é mesmo, meu caro. Bom, muito bom...
Segurou o braço de Lucas. Seu toque era gelado e agudo, extremamente doloroso e deixou Lucas mudo.
Ele suportou aquilo, sem saber o que fazer naquela tão bizarra realidade em que se metera.
Bi. Bi. Bi.
A buzina do carro tocou.
O carro estava fora do estacionamento. Em todos os vidros escrita em sangue, a palavara “Vem”.
O gerente lhe perguntou, novamente com seus rotineiros olhos claros e azuis:
--- Posso ajudar?
--- Sua conta senhor.
Vup.Vup.Gasp, a impressora vomitou papeis em branco.
O gerente virou-se para o host do hotel.
--- Acabou a tinta da impressora, imbecil. Providencie a conta deste senhor em outra máquina. E já.
Não havia braço gelado nenhum segurando Lucas.
Apenas o host sério, sem poder fechar a boca direito devido aos dentes afiados que lhe cortavam os lábios.
E no segundo seguinte, o gerente voltou-se para Lucas. Os olhos ocos e sorriso úmido. O toque.
Queimadura, frio. O gerente o levou para o lado.
Outra impressora endiabrada imprimia fotos da família saindo do estacionamento.
Em marcha ré. Lentamente.
Vup...Vup...Vup..
Aos poucos o rosto da irmã tornava-se apenas uma boca aberta nas imagens.
--- Vêm...
--- Sua conta senhor.
--- Algum problema aqui?
A mãe saiu do carro, seus movimentos tortos e desarticulados, como se fizesse parte de vários fotogramas. Disse para o marido ao seu lado.
--- Pai. O Lucas precisa se decidir.
O pai, nas fotos,  dentro do carro:
--- Ele já é mais que grande e nós mais que velhos, mãe. Adeus.
Seu corpo pegou fogo espontaneamente, mas ele não gritou. Apenas derreteu, ossos queimados como um palito de fósforo.
--- Adeus.
Seus ossos desprenderam-se de seu esqueleto numa chuva de cinzas. Uma mancha escura surgiu onde o pai estivera, cercada por pequenas chamas amarelas que se extinguiam no banco traseiro do carro.
--- Oh. Que pena. Aquele senhor pagou 50% de sua conta, meu caro. Quer saber o total, já vai:
VupVupVupVupVup
A mãe avançou para a filha nas fotos.
Abraçou-a. A filha escancarou a boca muito além do possível para um ser humano, uma fenda escura rachando ao meio o ar.
A mãe pulou lá dentro.
--- Sua conta senhor.
--- 75%.
--- Vêm...
Vupvupvupvupvup.
A fenda no ar movia-se nas imagens da impressora, cresceu, tomou forma, saiu delas:
--- Vem
Vupvupvupvupvup.
--- Sua conta senhor,
--- Posso ajudar?
Vupvupvupvupvupvupvupvup
Olhos vazios, dentes de canibal, fendas gigantes.
Ahahahahahahahahahahahahahah, enlouqueceu Lucas.
Pulou para a fenda gigante que, um dia, foi a boca da irmã.
--- Vem...
Foi.
A fenda fechou-se no ar.
O gerente expressou sua tristeza franzindo a boca murcha.
--- Que pena. Tantos prazeres perdidos...
O host ainda insistiu:
--- Sua conta, senhor.
Integralmente paga, pareceu responder a impressora ao parar de funcionar.



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