O PSICÓTICO DR. POKERFACE




Sala do psiquiatra. Coisa chique. Clean. Vasos com bambu e bonsais, quadros abstratos relaxantes, cheiro de couro no sofá.
Paredes a prova de som, os pacientes podiam chorar a vontade. Ninguém jamais os ouviria.
Eu de calça jeans, camiseta, tênis e mochila. Ele, calça e camisa social. Sem jaleco. Sapato cromado. Italiano, sem dúvida.
Tudo bem, tem gosto pra tudo. Vou logo pro que interessa:
--- Dr, não aguento mais a solidão. Está tão grudada na minha pele que ando pensando em criar um Fakebook chamado minha solidão e não botar nada lá, deixar tudo vazio. Daí vou no meu e coloco no status: “Em um relacionamento sério com.... Minha Solidão, kkkk. – dou um sorriso sem graça. Olho pro cara.
Frio é pouco. Sua cara é uma geleira. Nem levanta a sobrancelha. Nada do sorriso amarelo que pretendia arrancar.
Pokerface total.
Ele:
--- E como vai sua solitária vida sexual?
Mas que porra é essa, eu penso. O cara acha que eu ainda planto cabelo de saco na mão? Olho para ele.
Os olhos do cara estão vidrados em mim. Arregalados. Tão ansiosos por uma resposta quanto um psicopata por sua próxima vítima.
Encolho-me no sofá, mas não tem jeito.
Aqueles olhos se estreitam. Se não responder, sei lá o que vai me acontecer. Então dou uma de mané.
--- Como assim, dr?
--- Simples. A solidão não elimina o desejo, mas torna-o mais intenso. Se você não abrir uma válvula de escape, ele vai retroalimentar a solidão, que, por sua vez intensificará teu desejo e tal ciclo, na maioria dos casos, gera uma reação em cadeia que termina num surto ou numa depressão em pessoas ansiosas como você, que apresentam um claro caso de picos humorais ao longo do dia, dificultando o meu trabalho de medicá-lo.
--- O senhor está querendo dizer que eu tenho que primeiro dar uma esporrada para depois ser medicado?
--- A questão é que seu superego está afetando sobremaneira seu id, gerando uma depressão convexa de seu ego, o que culmina num quadro antissocial que você erroneamente chama de solidão, pois sua ideia e casar-se com ela, como demonstra sua pretensa piada sem graça – eu achei muito legal minha piada, antes que eu me esqueça - e na aparente falta de libido. O seu id almeja o prazer libidinoso, mas seu superego o reprime. A sensação de impotência deriva do poder de censura do último sobre o primeiro, desiquilibrando seu ego e gerando, mais que uma solidão uma ilusória falta de si mesmo que você mostra querer suprir com o tal fakebook. Esse quadro retrata um desejo intenso que, caso não for liberado, deixá-lo-á num quadro clínico irreversível de tratamento. Portanto, repito, como vai sua solitária vida sexual?
Ah não, que é isso, meu chapa. Não foi para ver um sujeito com metade da minha idade, cheirando à perfume francês e com uma barbinha bem feita para disfarçar a cara de bebê que torrei quinhentão.
Punheta, quem tinha que tocar era ele, não eu. Aliás, será que não é um convite? Olho pro cara.
Olhos frios de psicopata. Pokerface. Inclina-se para mim:
--- Posso ver seu constrangimento, meu caro. Não se preocupe, estou aqui para ajudá-lo.
Não me contenho:
--- Para tocar uma punhetinha, doutor?
Caio na gargalhada, rio até o corpo se dobrar, não consigo evitar. A situação exige. Ele com certeza deve estar rindo também. Não há outra reação possível.
Mas, ó santo Deus, não. Ele está firme em sua imensa frieza. Nem uma rachadura na geleira, nem um tremor no canto da boca, os olhos lá fixos em mim.
Engulo em seco o riso. Trato de ficar sério, mas ele não deixa:
--- Ajudá-lo a ajudar a si mesmo a superar a sua atual situação limítrofe e ajudar a mim mesmo a fazer o meu trabalho e medicá-lo.
E pude ver os olhos dele brilharem, quase soletrando o verbo medicar.
Olhar de psicopata. Pokerface.
O sofá fica muito pequeno.
--- Não tenho essa tal vida sexual solitária, dr...
--- Mas há de ter. Pois só assim perceberá o desejo que há em si e poderá lutar contra a solidão ao invés de contrair um icônico matrimônio com ela, o que diria ser quase uma maneira de expressar sua esquizofrenia.
Putaquepariu. O foda de psiquiatras é isso. Uma piadinha só e pronto. O cara te prega uma placa na testa. Esquizofrênico está escrito na minha.
Não aguento.
--- Esquizofrênico meu cacete, porra!
--- Sim, o seu órgão genitor, não o senhor, pois é ele que está confuso, não a sua pessoa. O senhor me entendeu mal, muito mal, meu caro.
“Cara é esta merda de consulta, cacete” digo cá com meus botões, mas não tenho coragem de dizer pro doutor Geleira, o psicótico pokerface. Mas dou a minha cutucada:
--- E o que o senhor quer que eu faça? Socar uma? Aqui, agora? Isso aqui tem um quartinho pra gente descascar banana vendo revista de sacanagem que nem clínica de inseminação?
Daí, pela primeira vez, o cara sorri.
E, com isso, quem fica gelado sou eu. A boca dele arreganha-se de uma orelha à outra enquanto sua mão direita vai para às costas buscando algo. Que coisa horrorosa aquele sorriso. Se ele estivesse usando batom, seria o próprio coringa com aquela cara sádica que apavorou gerações.
E, na eternidade que durou seu gesto, o cara realmente era um maníaco tentando alcançar sua faca Ginzu. E eu lá parado, cú na mão, sem nem piscar os olhos esperando o golpe fatal.
Quando finalmente sua mão direita voltou à frente, segurava uma carteira.
O dr psicótico pokerface olhou para um lado e para o outro, como se não estivéssemos a sós e esperasse que a qualquer momento alguém o pegasse com a boca na butija.
Ainda com aquele medonho sorriso, ele abriu a carteira, fuçou lá dentro e tirou um saquinho com um comprimido.
Aí eu me empolguei. Opa, vai rolar algum barato ilegal ou proibido. É hoje que vou pular pra galera e partir pro abraço, ainda que imaginária a galera e solitário o abraço.
Doce ilusão... Um olhar detalhado revela o miraculoso triângulo azul dos brochas, velhotes com rojões no rabo e ejaculadores precoces. Meu sincero respeito à eles, quem já não enfrentou esse problema que levante a mão. Eu não levanto.
Mas não é essa a questão, o buraco é mais embaixo, ou nem é buraco, só um chocalho que não quer sambar solitário, ou já é tarde demais para desentortar o pepino, ou fazer o jabuti sair da gaiola, vai lá se saber. Eu não sei.
Mas o dr psicótico pokerface parecia saber muito bem o que fazia. Sem nenhum desperdício de gesto, como num ritual diário, deslacrou o envelope, despejou o comprimido na mão e o estendeu a mim dizendo:
--- Eis a química do prazer, tomai-a vendo um triplo x. Retorno daqui a quinze dias. Então veremos. Sua hora acabou. Pagamento com a secretária.
--- Doutor, com todo o respeito, como vou usar isso senão tenho com quem trepar, me diz?
--- Exatamente, meu caro. Para usar sua linguagem, muito chula, por sinal, tão vulgar que cabe aqui sugerir que aperfeiçoe seu vocabulário para que possamos atingir, em futuras sessões, um nível mais elevado de diálogo e consequentemente de entendimento. Mas, como estava dizendo, a questão não é – torce o nariz – “trepar com alguém”, mas sim consigo mesmo.
--- Mas, caralho, que loucura é essa, isso é um estupro auto impingido, só para melhorar minha chula linguagem... O senhor é totalmente insano.
--- Só estou fazendo-lhe esta exceção, porque simpatizei-me, apesar de sua grosseira vulgaridade, com sua pessoa. Se isso lhe parece insano, talvez eu deva lhe falar sobre o que posso fazer clinicamente com o seu caso, uma vez que a mim o senhor confiou sua lucidez...
Abriu uma gaveta e sacou de lá um formulário onde pude ler em letras garrafais a palavra INTERNAÇÃO.
Foi a gota d’agua. Explodi em ação antes que pudesse perceber.
Chutei seu saco com toda a força.
Curvou-se, mas não caiu.
Ele urrou de dor.
Rá, com aquelas paredes, ele podia gritar a vontade. Chutei seu saco de novo.
Urrou, mas não caiu.
Chute no saco. Urrou. Caiu.
Torceu-se de dor. Abriu a boca para falar algo.
Não deixei. Aproveitei aquela boca aberta e esfarelei o comprimido azul nos dentes dele. Bem esfareladinho. Com toda a força que podia. Aquilo ia bater num instante.
Então, enquanto ele se retorcia, rasguei sua camisa, deixei-o nu da cintura para cima.
Ele tentou se levantar.
Chute no saco.
Desabotoei o cinto. Sem reação.
Abaixei suas calças. Sem reação.
Quando fui tirar sua cueca, ele tentou me agarrar.
Chute no saco.
Arranquei as cuecas.
Nova tentativa.
Chute no saco.
Ele se acalmou.
Peguei suas roupas, enfiei-as na mochila.
Então escrevi um número num papel e o deixei em sua mesa.
--- Pode me processar. Taí o número do meu advogado. Quero ver você virar piada jurídica, seu filho da puta.
E vazei da sala.
Fui ao balcão da secretária, tinha umas coxas lindas, e logo eu ia lhe dar a chance para usá-las. Disse à ela:
--- Tenho certeza que o doutor precisa de você. É melhor você dar um pulo lá.
E fui para as ruas.
Uma leve tempestade de consciência atormentou minha alma.
Não muito, mas o suficiente para ir à uma loja pornô.
E no meio das carnes em trêmulos vai-vens, falsos gemidos e gritos mentirosos de prazer, percebi o quão ilusórias são as penitências. Sem saber direito o que fazia, abri minha mochila e larguei lá, na loja, as roupas do dr. psicótico pokerface.
Saí de lá rápido como uma bala.
E minha solidão me pareceu tão doce, que fiz o tal fakebook para ela e com ela entrei em um relacionamento sério.
Detalhe, único amigo de Minha Solidão: Dr. Psicótico Pokerface.


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