Jonas e o Boitatá

boitata em pé
Este causo se passou há muito tempo atrás. Uma época em que São Paulo não era a potência cafeeira que viria a ser. Movia-se a base de criação de gado em pastagens que conviviam lado a lado com a vegetação selvagem, a mata, a serra e o cerrado
O trabalho exigia pouca gente, não havia necessidade de escravos e os peões eram livres: negros, mestiços, indios e brancos. Todos convivendo na fazenda de gado do proprietário rural em pequenas comunidades. Lá não havia médicos, mas curandeiros, homens e mulheres que conheciam as tradições das culturas de todas as raças e os segredos das plantas. A eles, respeitosamente, a gente daqueles tempos recorria em casos de parto, doenças e picadas de cobra, fosse em boi ou em homem.
Porém, muito do respeito era temor. Pois, naquela época, os mitos eram reais e estavam soltos neste mundo, sob todas as formas. Seres que uivavam, caçavam e espreitavam nas sombras das matas. Enviados do Capeta para atormentar gente de bem.
E as pessoas desconfiavam dos curandeiros: teriam eles parte com o demo? Quem transmitia seus conhecimentos? Como sabiam que dar de comer para a grávida um cozido de azeite de dendê com Quiabo, Capeba, Juta e Grama Danada ajudava a criança a deslizar para fora da barriga? O que eram aqueles nomes desconhecidos pronunciados reverentemente junto com lingua de gente naquela reza estranha, junto à cama da futura mãe:
--- Èrúwá preto ajuda-me a conseguir minha própria criança. Oóyó diz que a criança deve deslizar prá cá. Ilá abra caminho para que a criança venha.
Temiam e desconfiavam, mas recorriam a eles mesmo assim. E a criança vinha.
Foi assim que veio ao mundo Jonas Soares, deslizando aos berros do ventre de Gisela para as mãos hábeis da velha negra Quitéria.
Jonas foi crescendo e sua infância corria normalmente, ora brincando por aí com as outras crianças, ora ajudando à mãe e a irmã mais velha, Janaina, a dar ordem na choupana de chão de terra batida. O menino adorava a irmã. Janaina era uma rapariga de 14 anos, esguia e bonita que começava a despertar a atenção dos jovens da fazenda. Herdara, bem como Jonas, os cabelos cor de palha de milho da mãe e o semblante sério do pai. Mas os olhos da cor do mel, que eram só dela, traiam sua doçura. Uma doçura que desembocava em Jonas. Dormiam lado a lado, na mesma esteira e era ela quem acudia Jonas em seus pesadelos infantis sussurrando baixinho cantigas de ninar para não acordar os pais:
--- Boi, boi, boi. Boi da cara preta, pega esta criança que tem medo de careta....
Ou ainda:
--- Ô dono da casa, a sua licença, pro meu boi passar na sua presença.
Também fazia parte dos deveres de Jonas, levar a marmita para seu pai, Manoel Soares, exímio castrador de bezerros.
Manoel aproveitava estes momentos para despertar o gosto do filho pelo ofício, mostrando-lhe os segredos do torquês ou a maneira certa de cortar a faca o escroto do bovino:
--- O torquês é mió. Menos dor pro animal. Num precisa nem de amarrá. Mais tem bezerro que resiste, dá pinote, parece que pressente o destino, coitado. Aí só na faca bem amolada. Baita trabaiera. Toca a amarrar. Assim ó.
E laçava um bezerro, derrubava-o e, num instante já estava encima dele, imobilizando as quatro patas em movimentos precisos e rápidos.
--- Entonces, a gente faz um corte no saco e vai tirando as tripa de dentro até não sobrar nada. Tá vendo?
Jonas via a contragosto. O bezerro mugia de dor, tremendo todo a medida em que o pai retirava o conteúdo da bolsa escrotal. Era apavorante para uma criança de 08 anos. Seu pai percebia a reação:
--- Meu fio, teu pai tá te fazendo um favor. É bão saber um ofício. Meu pai me ensinou mais ou menos na sua idade e o pai do meu pai também. Nóis tudo achava uma feiura só. Mais aprendemo cedo e ficamo bão no que fazemo. Tá no sangue. E assim fomo se garantindo na vida.
Um dia, a castração foi difícil. Manoel recorrera à faca devido a resistência do animal. Mas o bezerro resistira e afrouxara as amarras, movimentando-se bem na hora da abertura da bolsa escrotal. Seu pai cortou-o na barriga. Um pequeno talho, mas o suficiente para um jato de sangue molhar suas mãos e os pés do menino aterrorizado
castração torques






Então Manoel Soares procurava uma sombra, almoçava e devolvia a marmita vazia para o filho levar de volta para a mãe. E assim seguia a vida até que....

















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